Os arsenais podiam ser feitos de groselhas. Todo o sangue derramado não seria sangue, apenas um sumo incumbido de provar as almas dos atingidos. Se não houvesse maneira de converter os párias, forjar-se-ia um modo de eliminar os seus arsenais que tiram vidas a sério. Nem que fosse à força de um sortilégio sem denominação.
2
Os cavalos pastam nos prados. Não foram feitos para jazerem, mortos, num campo de batalha que deve pertencer aos humanos que se entretêm a serem dementes. Os morteiros que ceifaram o cavalo haviam de ser devolvidos, e com juros, aos militares que os dispararam.
3
Os velhos dançavam com a leveza do seu vagar. Olhavam-se nos olhos, amorosamente, como os mais novos não conseguem olhar. O único desejo era o mais valioso de todos: continuarem no enlevo dos braços recíprocos, a dançar. Com a certeza de que aquela dança se eternizava no exílio das memórias. Não queriam mais nada. Apenas jurarem, um ao outro, que para tamanho amor não existe morte no dicionário.
4
Os lobos desterrados porfiavam pela noite fora. À noite, a probabilidade de humanos é menor; é mais seguro para os lobos (os animais mais misantropos que há). Juntam-se em alcateia, saltarilhando de cumeada em cumeada, sob o testemunho do luar arrebatado. Antes que seja manhã, cada lobo segue numa direção diferente. Deixam de ser alcateia. Comprometem-se com a (sua) natureza.
5
Os jovens executivos, vulcões de ambição quase a entrar em erupção, ocupam-se das coisas materiais. O verbo dionisíaco é enriquecer. De preferência, cedo. Têm medo que a vida seja efémera. Se for efémera, não tiram partido da orgia material com que sonham acordados. Um poeta, também aspirante, coincide no mesmo restaurante, na mesa do lado. Teve mote para uma epopeia, e de graça. Os jovens extasiados com a ditadura dos números e das divisas não são capazes de declamar um poema de cor, nem que seja modesto em estrofes.
6
A cordialidade está em vias de extinção. Há quem proponha que seja desqualificada do dicionário, passando a integrar o museu arqueológico. A desconfiança metódica é a fronteira que ninguém consegue cruzar. É um comportamento que adultera a coincidência de vontades. Um oportunista mais oportunista do que os outros gaba-se de enganar toda a gente e de arregimentar a seu favor o troféu do mais esperto. Há quem tenha comiseração dele e do seu séquito. Muito embora estejam em vias de extinção. O que é uma candeia que alimenta a esperança no futuro da espécie.
A mania das grandezas. Povoadas as esquadras do pensamento com a dissidência, uma indulgência sobre a monotonia que cobre os dias seguidos; só para haver alguma sensatez no lugarejo de outra forma sórdido. Uns personagens, sinistros, ditam as bissetrizes que depois são seguidas pela multidão. Poucos são os que habitam o pelotão da frente; muitos são os aspirantes a sê-lo.
Há sempre um palco situado num plano acima dos demais. Só uns quantos têm acesso ao palco centrípeto. Ensinam-nos a ladainha da ética republicana, para nos convencerem que a igualdade não é retórica. Ao fazê-lo, atiram areia para os nossos olhos. Deviam substituir a ética republicana por um princípio aristocrático. O escritor tinha razão antes de o futuro se tornar presente: uns são mais iguais do que os outros. Só falta ter o lacre oficial.
Os conhecimentos privilegiados, as palavras que desatam nós de outra forma empatados na irritante burocracia, a burocracia que não tem estatuto uniforme, os predicados dos favores que se ficam a dever numa teia interminável de favores que pagam favores que por sua vez pagam favores, ou nomes que fazem milagres: eis o dicionário do dia-a-dia, em contramão com os mandamentos que se exaurem ao serem passados à prática. A ética republicana não existe.
Por dentro do pelotão da frente, medram os privilégios e as portas que se entreabrem mercê dos conhecimentos certos. Se não tivesse havido o primeiro favor em débito, o favor que mais tarde teria de ser cobrado, a teia interminável de favores não teria sido desenredada. Ateia-se o rastilho de um labirinto ciclópico e a maioria fica sitiada na ausência do conhecimento certo, do favor pretérito que tem de ser cobrado. Esta é uma família que não é biológica, com ramificações que se desmultiplicam em múltiplos fios soltos.
Do alto do pelotão da frente, os importantes olham para baixo com desdém. Fixam os cotovelos nas cabeças frágeis dos descamisados e passeiam a arrogância de quem sabe habitar no pelotão da frente. A igualdade é uma miragem.
Na inocência anunciada, a noite alimentava-se de luar. Os estribos eram desarrumados das costas das pessoas, elas não precisassem de arquear com todo o peso do medo. Ao longe, o mar parecia ameno. Sem ondas. Apetecia tatuar os corpos na água. Mas o mar não era convidativo: o inverno fizera dele um estuário onde não era recomendável estar, sob pena de o medo da morte se instalar por dentro dos poros intrépidos. Em vez da arneses, trouxeram apenas a loucura. Erravam, como erram os que se esqueceram de quem são. Apetecia perguntar pelo seu paradeiro. Apetecia perguntar pelos seus nomes – embora estivesse em condições de apostar que não se lembrariam de anunciar os nomes e estivesse convencido da elevada probabilidade de levar de vencida a aposta. Eram como náufragos, com a diferença de que nunca tiveram um paradeiro para que pudessem ser considerados náufragos. Não se lembravam de terem embarcado num navio e de terem rasgado as águas avulsas de um mar. Mas eram náufragos. Náufragos que não precisavam de procurar bandeiras, ou hinos, ou tempestades que evocassem outros náufragos que fabricaram mitos antes de eles não serem admitidos como mitos. Se lhes perguntassem, diriam que não queriam ser mitos. Não queriam ser nomes, póstumos. Apenas queriam ser a condição póstuma de um náufrago. Talvez uma placa alusiva num recanto do porto, depois de cerimónia mal encenada em que o homenageado fora o ministro da tutela. Talvez um nome imortalizado num memorial criado na parede do bar dos pescadores, sem que houvesse notícia de ministros ou de outros responsáveis. Se se lembrassem dos nomes. Apenas se lembravam dos nomes das ondas que rasgaram antes que uma onda maior do que o navio o rasgar a meio. Submersos na fatalidade do mar: perderam o direito a ser nomes, o direito a ser náufragos.
(Como se ensina um jovem a escrever ao Pai Natal – pois os jovens podem emergir como ícones, são figuras míticas de que o mundo órfão de causas tanto precisa, mas tem de haver alguém na retaguarda a desenhar o pensamento do jovem.)
Pai Natal, seja lá quem tu fores e seja qual for o teu paradeiro:
Devo começar por apresentar credenciais: não acredito que tu existes. Não me convenceram, logo em tenra idade, naquela idade em que começamos a ter das coisas uma inteligibilidade consciente, que tu existias. Percebi, ainda mal me tinham caído os dentes, que és a fachada da conspiração do capitalismo que se serve da tua figura para se perpetuar. E nem o facto – decerto congeminado pelos conspiradores a soldo dos piores capitalistas – de apareceres com fatiota vermelha e farfalhuda barba de cãs, dando a entender que és a personificação moderna do velho bom Marx, me iludiu. Em abono da verdade, sempre me disseram (especialmente os que me inventaram como produto mediático) que estava muito à frente da mediana da minha faixa etária. Mesmo não acreditando na tua existência, dirijo-me a ti porque sei que as cartas que te são endereçadas passam pelo crivo dos censores que são os soezes procuradores do capitalismo que não cessa de agravar as desigualdades entre os que tudo têm e a turba que vive à míngua. E tu, Pai Natal, sob essa aparência querubínica de um bom Marx reconvertido para espalhar o bem entre os mais novos, como se fosse preciso doutriná-los para serem eternamente vassalos do consumismo que pereniza o grande capital, és cúmplice de um mundo corrupto. Não sei se te deste conta, se é legítimo o parentesco ideacional com o velho bom Marx, se entendeste como és o idiota útil de um sistema económico profundamente injusto.
Quero-te interpelar para um desafio: no próximo ano, tu – e todos os teus franchisados que estão espalhados pelo mundo fora – deviam fazer greve ao Natal. Deviam recusar o traje típico que, em minha iluminada opinião, até consubstancia um atentado à estética. Deviam interiorizar os pergaminhos do vosso sósia, saindo à rua para denunciarem os malvados capitalistas que se servem da multidão alienada para continuarem a oprimi-la, sem que ela tenha consciência do papel cúmplice a que se prestam.
Nesse natal, caro Pai Natal, tu serias o intérprete da revolução de que tanto precisado está o mundo. Nesse dia, serei o primeiro a humildemente reconhecer que, afinal, tu existes.
Não eram barretes que se metiam na cabeça, que estava um calor de ananases e o barrete ia derreter o pensamento. Naquele lugar – para mais – o que mais havia era gente a enfiar o barrete, com todos a quererem enganar os outros, um lugar do folgazões com propensão para a aldrabice. Os frigoríficos avariados tinham valor de mercado e não eram despachados por uma bagatela. Faltava sempre gelo, até para as bebidas que corriam o balcão do bar antes de refrescarem (e serem um começo de embriaguez) os candidatos a pai natal.
O próprio pai natal aparecia em público só com uma tanga vermelha e a abundante pança a adejar. Este era o lugar em que o natal era um inestético pesadelo. A tradição, talvez por esse motivo, começava a perder as suas fundações. De geração em geração, até de ano para ano, o natal era menos popular. Nem os apelos dos sindicatos, preocupados com os danos no comércio não pela via dos detentores do capital, mas pelo ângulo do trabalho em vias de ser extinto, estavam na linha da frente da campanha de reabilitação do natal. O mundo também precisa de ser virado do avesso para fazer algum sentido.
Os víveres habitualmente natalícios estavam em desmoda. De geração para geração, até de ano para ano, as matérias-primas que avivavam a tradição gastronómica da quadra estavam a ser menos vendidas. As pessoas, cada vez mais pessoas, aderiam aos malefícios do fast food – até na ceia de natal, que começava com a luz do sol a caiar o horizonte. O imaginário musical do natal perdia âncora. Os mais novos continuavam a ouvir as músicas da sua preferência. Nem quando um cantor afamado de reggaeton adaptou uma música de natal em versão reggaeton, as gerações mais novas foram convencidas das delícias da quadra natalícia. Descobriu-se, semanas depois, que o cantor tinha sido pago, e a peso de ouro, pela associações de comerciantes.
O natal sempre fora distinto naquele lugar exótico. Não havia neve, as pessoas usavam o mínimo de roupa (atendendo às temperaturas exorbitantes), as melodias evocativas da quadra arrastavam-se em acordes de reggae, a luz do dia parecia eternizar-se e, se fosse um povo católico, a missa da meia-noite ainda era no crepúsculo que precede a breve noite.
Um visitante, vindo de um nórdico país, sentenciou: isto é como se o natal fosse em junho. Nunca mais voltou àquele lugar em dezembro.
Desconfia-se da decadência que nos toma a todos, como se por efeito da lei da gravidade fôssemos empurrados para um fundo de onde é impossível sair. Protesta-se contra a decadência. Os diligentes feitores dos bons costumes abjuram a decadência: é para o lado oposto que nos devemos mover, para não deixarmos os bons costumes condenados à orfandade. Esta é a moral a que temos direito. E, todavia, em sumarenta safra de uma colheita silenciosa, a decadência avança como se fosse uma lava a sair constantemente de um vulcão. Imparável.
Não é da decadência que nos empurra para a morte que se trata. É da decadência que investe contra os costumes e sitia os seus fautores na heresia, abandonados pelos que estão no lado certo da barricada. E, contudo, apetece é figurar entre os apóstatas que se refugiam no lado decadente da barricada. É preciso encontrar as baias da decadência para não ser um obediente peão da normalidade estabelecida. Porque esse estatuto é medíocre, um território exíguo que trava o efeito propulsor das mentes que querem saber do destravão da criatividade.
O elogio da decadência tem outra vantagem: permite o reforço dos caudilhos que defendem os bons costumes e se atiram como cães raivosos contra os hereges que transitam pelas vielas da decadência. Se não fossem os decadentes, que causas mobilizariam as hostes que se atiçam contra a decadência? Se não fossem os decadentes, onde iam sufragar parte da cobiça que os move contra a decadência?
A decadência não é por acidente ou por indigência. Um decadente não procura indulgência a não ser por ativação da sua consciência. É essa a superioridade moral do decadente: põe a sua consciência à prova de cada vez que arremata mais uns trunfos para o bornal da decadência. Não pode dizer o mesmo o purista, o que merece aprovação perene nas arcadas da consciência, porque nada lhe pode ser imputado como desvio a favor da decadência.
A História é uma sucessão de episódios de decadência. Uma rampa contínua que acrescenta uns gramas diários ao peso da decadência que se arqueia sobre as boas consciências. Estas, impecavelmente adestradas, exibem o seu cadastro feito de loas. Não sabem o que é a consciência – não precisam de saber. E essa é a sua lídima decadência.
O senhor doutor chegava atrasado, sistematicamente atrasado. As consultas tinham hora marcada, mas a pontualidade era só para os pacientes. Os pacientes tinham de ser muito pacientes com a falta de pontualidade do senhor doutor. E com a sua proverbial arrogância.
O senhor doutor estava montado em cima de uma pressuposto a seu favor: a saúde dos pacientes dependia de si. Sabia que há alturas em que a saúde dos pacientes entra em roda livre e nem os seus putativos milagres conseguem aplacar as maleitas. Enquanto mantivesse os pacientes reféns de um misticismo que tem o senhor doutor como protagonista, a relação desigual continuaria até o senhor doutor meter os papeis para a reforma. Nunca a ideia de poder fora da órbita de controlo teve tamanha representação.
Um dia, o senhor doutor bebericava o habitual whisky pós-jantar enquanto espreitava a televisão. Era um debate sobre saúde pública. Um dos convidados argumentava que os futuros médicos deviam ser treinados para a ética médica, para não repetirem os erros dos antepassados que estabelecem uma relação assimétrica com os pacientes. O senhor doutor remexeu-se na cadeira, como se tivesse sido acometido por uma súbita alergia subcutânea. Pegou no telemóvel e conseguiu intervir no debate, desfazendo o interlocutor: “não, não, os médicos não precisam de aprender ética; eles são os tutores da sua própria ética. Que topete, o de quem sugere tamanha coisa!”
No dia seguinte, um paciente entrou no consultório. À entrada, teve a ousadia de protestar: “a consulta está atrasada uma hora e meia.” O senhor doutor ficou sem reação, estupefacto com a insolência do paciente. Não demorou a ultrapassar a inação: “se estiver incomodado, pode sair imediatamente.” Foi o que o paciente fez. À saída, despiu-se do disfarce que tinha envergado. Era uma encenação. O paciente não era a identidade do paciente que estava na agenda para a consulta das seis e meia. Era o interlocutor do programa da televisão, o da ética obrigatória para estudantes de medicina. Tomou a identidade do paciente das seis e meia, só para atestar a indiferença do senhor doutor (que lhe tinha chegado aos ouvidos).
A secretária do senhor doutor chamou-o à receção. O senhor doutor bramiu: ela é que devia ir ao consultório do senhor doutor, homessa! A secretária insistiu, a medo e acabrunhada: “por favor, senhor doutor...é no seu interesse”. O senhor doutor fez-se vagarosamente ao caminho, contrariado, arrastando os cento e dez quilos de destempero de hábitos. Ao chegar à receção, não reconheceu o homem que o aguardava. Este, sem perceber se o senhor doutor fingia não o reconhecer, num ato de pesporrência que quadrava com a sua fama, disparou:
- Não está a ver quem sou. Eu ajudo: sou a pessoa que acabou de sair do consultório. E sou aquele que ontem o senhor distratou na televisão. Vim aqui só para confirmar o que eu desconfiava. E para confirmar a ideia que defendi ontem na televisão. Aliás, até me ajudou a mudar de ideias: devia ter defendido que os médicos encartados devem-se sujeitar a uma reciclagem de ética de cinco em cinco anos. Para desfazer de vez essa arrogância entranhada.
Tanto cimento para as bocas compêndio. Tanto alarido entre os monges circenses. Tanta a volúpia no santuário do silêncio. Tanta a madrugada deitada sobre a maré baixa, a maresia a avançar como se fosse lava bolçada. Tanta gente na moldura do tempo, a gente bucólica. Tantas as palavras viradas do avesso por dever de ofender a rotina. Tantos desejos não fecundados pelas circunstâncias sem paradeiro.
Tento o entardecer como morada balsâmica. Tento as moradas por inventariar como quem demanda apeadeiros gastos na poeira do tempo. Tento morder as bocas inválidas para as deixar surdas com os votos da estética. Tento angariar demónios esculpidos em farsas inevitáveis, à medida de uma rebeldia militante. Tento desocupar os baldios do pensamento. Tento avivar as arestas do cálice puído, pode ser que o vinho saiba a néctar. Tento a baliza do desacontecimento antes que seja feito refém pelo tempo amaldiçoado.
Trago a indústria do desmedo a palpitar nas veias. Trago os poemas desembaraçados nas fundações de uma tempestade de ideias. Trago tantos nomes depostos nas sepulturas abandonadas. Trago os tentares assimétricos no magma estrelar que se hasteia à contraluz. Trago os víveres que desmentem o faminto estado geral dos desapoderados. Trago sentidas condolências aos que precisam de condolências pressentidas. Trago a fome do conhecimento ao saber que há de ser maior do que fica por ser conhecido.
Tiro ao futuro os abcessos para ver se ele cresce. Tiro o alvo desalmado dos braços exauridos dos estetas naufragados. Tiro as medidas ao desmedido para saber da cor do infinito. Tiro as harpas amarelecidas ao bolor dos luares acastelados para aprender a partitura do belo. Tiro as lágrimas fervidas no vulcão extravagante onde se ensinam os poemas válidos. Tiro os tremores que desassossegam o rio em noites intermináveis povoadas pela insónia. Tiro os idiomas ao património anoitecido, como se passasse à condição poliglota que aprende a medir as almas pelos seus deslimites.
E tento que tanto seja menos do que o desejado, para que todas as medidas partam sem saberem onde o infinito ajeita as melenas do pensamento.
A medalha dizia a cor do peito. A cor de tudo. Mas a cor não importava. As cores prescreveram. De cada vez que olhava para o vale falava com a medalha. Esperava que a medalha dissesse algo. Um verbo contínuo, oxalá. Mas era a angústia que se revelava depois de o nevoeiro ser apeado do vale. Não queria pagas de outra forma. Não aceitava que fosse uma mártir da injustiça.
Às vezes, a manhã dizia, em suaves murmúrios, que devia mudar de lugar. Ela pedia explicações. A manhã continuava a murmurar, sem hesitar nas palavras entoadas com uma pura articulação das sílabas. A manhã dizia: “não levas mais nada deste lugar, a solidão já tomou conta de ti e temo que não aguentes o terrível peso da solidão”. Ela olhava para o chão. Procurava aconchego no chão, não procurava respostas. Era um reflexo condicionado: os costumes ensinam que a melancolia traz as pessoas cabisbaixas. Seria pior se demandasse uma resposta ao céu.
“A pior prisão é o pensamento.” Não sabia onde lera isto. A frase esmagava-se contra o peito condoído e era nessa altura que se agarrava à medalha, como se fosse um analgésico. Não precisava de doutores que cuidassem de uma alma como a dela, uma alma cheia de arestas impronunciáveis, arestas avivadas pela coreografia dos dias que desaguam num labirinto.
Voltaram a ecoar as palavras da manhã. E muito embora a manhã já tivesse sido deposta, as suas palavras continuavam a ser um pressentimento que não conseguia esconjurar. Ir dali para fora, mas para onde? Substituir uma solidão por outra? As solidões de diferentes lugares são equivalentes, ou medram em diferentes sangues, fornecem diferentes estados de alma? Precisava de passaporte para poder ser mecenas do seu exílio. Não sabia como justificar o passaporte: se confessasse que o lugar de agora se esgotava, podia não ser convincente para o passaporte. Ou podia meter-se ao caminho do lugar ermo da cidade onde tudo se passa às escondidas da luz para obter um passaporte forjado. Ao menos, poupavam-na às justificações.
Na manhã depois, acordou com um estranho sabor na boca. As palavras que subiam ao pensamento tinham um cheiro a maresia como só as manhãs acabadas de inaugurar conseguem dizer. Era refém do pensamento fortuito – o seu pensamento parecia-lhe sempre fortuito. Os remos estendidos não desequilibravam o pequeno barco que a transportava pelo mar imenso. “O pensamento é a escola da solidão” – e destas palavras não havia dúvidas sobre a autoria, eram da sua lavra.
Precisava de um passaporte. Só para se enamorar do passaporte, da ideia de passaporte. Para se curar de si mesma. Só a ideia de exílio chegava para uma súbita e incondicional lealdade ao lugar de agora. O passaporte seria uma oportunidade deixada em levitação. Um salvo-conduto, contra a tirania do pensamento.
A monumentalidade não vinha do passado. Havia países altos prometidos ao futuro. Uma janela sem vidros por onde todo o tempo futuro entrava. As pessoas não tinham o direito à melancolia. Não podiam afocinhar na desesperança, sob pena de degredo. Eram os países miradouro. Países que subiam pelos esporões da montanha até se encontrarem despojados de trivialidade. Países ostentando as medalhas do poder, como se costurassem as bainhas dos outros.
Os países altos só queriam o compromisso das gentes para serem tão altas quanto a ambição dos países. Não se sabia quem era a causa e o efeito. Não se sabia se os países com o arnês da altitude contagiavam as pessoas com esse estatuto, ou se era a ambição das pessoas que elevava a dimensão dos países. Se até os mais eruditos desprezaram a tarefa teórica que se antepunha, ela foi despromovida a desacontecimento. Só interessava saber que eram países altos. Mais altos do que dantes se diziam os mais altos de todos.
O silêncio dos outrora países altos causava perplexidade. Quem detém o privilégio não o passa sem protesto ou sem resistência. Os países agora altos proclamavam-se altos, com o garbo próprio de quem ostenta arrogância qualificativa. Os outros, os pequenos e os dantes altos, calavam-se. Os pequenos nunca tiveram a coragem para contestar os privilégios dos países altos. Os países dantes altos não tinham ido ao notário selar a passagem de testemunho. Os países dantes altos eram os países ainda altos.
Algumas pessoas começaram a desembaraçar interrogações. Dantes, quando um país reivindicava o estatuto de país alto, era admitido a concurso pelos outros. Não era o caso destes novos países altos. A diligência e o voluntarismo não eram critério. Uma coisa é aspirar a ser alto, outra é o estatuto ser reconhecido pelos pares.
Não estando delimitada com chancela oficial a condição de países altos pelos que tinham estando no usufruto do privilégio, os novos países altos não o eram até ver. Aspiravam a sê-lo. Puseram-se em fila de espera, à espera da caução dos então países altos. Não contassem com a sinecura antes de os países mesmo altos a sentenciarem. Medravam, por enquanto e até ver, na maresia da miragem que eles próprios semearam.
As palavras não contam todas. Os dias, também não. Não há a ideia de desperdício nos dias que desaparecem do inventário do tempo. É como as pessoas que se cruzam com a nossa vida. Se somos gregários, é porque dependemos uns dos outros. Esta medida de instrumentalidade recíproca desmonta o mito da convivência espontânea entre os semelhantes. Somos gregários porque precisamos de ser. Não somos gregários.
Tomo um café porque a cafeína ateia a concentração de que preciso para avançar pelo dia fora. O dono do estabelecimento serve-me o café. Não o faz por indulgência. Precisa de mim para manter o negócio, para manter o seu sustento. Se o dono do café entrasse em negação e não quisesse saber do negócio e do seu sustento, podia destratar-me. E eu tinha de adiar a necessária dose de cafeína até ao estabelecimento mais próximo.
Antes, podia responder à boçalidade do empresário por atropelar a boa convivência entre semelhantes e o código de conduta dos estabelecimentos comerciais. Ou podia responder ao destrate com a indiferença de quem vira as costas e procura o café mais próximo. Na primeira hipótese, o gregário desafiava o misantropo. Na segunda, respeitava o misantropo reagindo com uma dose homeopática de misantropia. Na primeira hipótese, seria mais fácil o gregário tornar-se misantropo do que o contrário. Na segunda hipótese, respondia à misantropia com a misantropia que é o idioma que o misantropo compreende. Suspendia a minha gregária condição. Revelava a minha condição genuína.
Exerço uma profissão porque, não sendo milionário nem cultivando a ascese, preciso de recursos para me sustentar. E, ou, preciso de uma finalidade para ter uma fundamentação ontológica. A lógica utilitarista é um lugar-comum. Há quem esteja contrariado, desapegado do mínimo proveito pessoal na profissão exercida. Há quem consiga construir um lugar de conforto por dentro dos deveres profissionais, seja por adesão (vingando o utilitarismo, outra vez), por convicção, ou por mera encenação (provocada ou apenas como produto da sua resignação).
No exercício da profissão interajo com pessoas. Presto um serviço que obedece a uma finalidade. Enquanto tal, sigo um código ético que tem duas fontes: a coletiva, que pode resultar de um código contratualizado pela prática social; e a interna, respondendo aos quesitos da consciência. Adiro aos códigos de ética, ou apenas ao que corresponde ao menor denominador comum (o interior). Sei que é um dever associado à condição gregária, como membro de uma comunidade que deve adotar, e seguir, normas de convivência. Faço-o espontaneamente, porque aceito essa condição como parte da minha integração no todo. Ao obedecer a esta lógica, admito a não espontaneidade da adesão, como ela não é autêntica. É predeterminada pela tomada de consciência dos custos da não adesão. Investir num ensimesmar que se subleva contra o estabelecido pode resultar na exclusão pelos outros. A exclusão que pode ditar a perda do meio de subsistência. Sigo-me por um estalão utilitário que despromove a genuinidade do ser gregário.
No exercício da profissão sou membro de uma comunidade. Articulo com os meus pares. Articulo com os destinatários do serviço que presto. E tenho uma responsabilidade atestada a um nível superior, que tem o grupo como procurador. Sou gregário, sou um ser social. Se somos parte de uma comunidade, devemos ter uma conduta que sublime o gregário que há em nós. A alternativa é a hostilidade, a degradação do ambiente de que somos uma personagem, o confronto – a beligerância por meios não bélicos, a emergência de um egoísmo atroz que descompensa a natureza humana ao atirar cada um de nós, consumidos pela coragem eidética, para um lugar de não pertença, para a insularidade que é a antítese do gregarismo.
Somos gregários por necessidade. Por estimarmos que ficamos pior ao negarmos a gregária condição. Não somos gregários por firmeza. Só não somos ilhas até ao limite dessa condição pelo peso utilitarista que nos faz arquear perante o indeclinável contacto com os outros. Não independemos uns dos outros. Mas esse não é o pressuposto da condição gregária: é a admissão de culpa de que se gregários não formos, estamos condenados a uma sobrevivência penosa.
É útil sermos “uns para os outros”. Não é uma condição inata à nossa natureza. Somos lobos. Lobos só eufemisticamente alcateia. Muitas vezes, lobos de nós mesmos, ao pesarmos a pertença como um obstáculo à idiossincrasia insular.
Os ventos cruzados embaciavam a gramática dos sentidos. Queriam-se juízos claros sobre o quotidiano do mundo, as suas adversidades e as maravilhosas descobertas que traduziam um futuro risonho. Queriam-se estrofes que prendessem a atenção e ficassem imortalizadas como citações em lugar de destaque. Mas um anoitecer imorredoiro persistia nas arcadas do tempo, como se uma leve desconfiança murmurasse verbos incendiados.
A miríade de coisas que passavam sob o radar da atenção colhia a dimensão do tempo. Não era de anestesia que se falava: os espíritos abertos tinham todos os dias um choque frontal com a miríade de coisas e de pessoas e de palavras que eram como forasteiros que logo a seguir deixavam de o ser. Dos livros que levantam a hipótese da desconfiança metódica (por causa do criterioso escrutínio da antropologia), pairava uma sensação perpétua sobre a verosimilhança do que era dito. Era preciso saber se eram confiáveis as palavras que embatiam na embocadura do ser, se eram confiáveis as pessoas que as entoavam. Se não havia mentiras a enfeitar as palavras e se as mentiras tinham cores sombrias, ou eram meras impressões que não ficam para memória futura.
Não se pensasse que a empreitada era dúctil. A verdade é volúvel, tão presa à subjetividade e à contingência de um momento e da sua circunstância. Os profetas da verdade só podiam apresentar credenciais atestadas pelo passado, o que dizia tudo sobre a capacidade dos oráculos. Não se lhes confiavam as teias da verosimilhança. Nem a ninguém. Não havia embaixadores da verdade, mas havia multidões militantes da mentira. O barómetro vinha de dentro de cada um; do mesmo modo que a iliteracia da mentira dependia do compromisso de cada um, o que a tornava uma verdade instável.
Para adornar a complexidade do assunto, a mentira não é objeto de reação simétrica: alguns, com propensão para a mitomania, ou apenas porque deixaram de se importar com impossibilidades, não desaprovam o cânone da mentira. E a mentira, agradecida, percebeu que tinham sido alçadas as fronteiras, passando de chão para chão, colonizando os dias uns atrás dos outros, fazendo seu o nome dos mitómanos.
Para conforto de alguns, foi certificado que no espaço público, e no privado também, nem tudo era mentira.
As rugas cavam a pele. Adivinham o futuro que se tornou um achado quando se contratualizou presente. Olha ao espelho, como se todos os dias tivesse de fazer o inventário das rugas. Observa com vagar. É capaz de jurar que meia dúzia de rugas estão mais cavadas. Envelhece – é o que o tempo lhe segreda (como se envelhecer fosse um segredo).
Envelhece e tem medo de envelhecer. Podiam dizer que todo o tempo deixado à frente do espelho é uma autocontemplação piedosa. Partem do conceito de admiração de si próprio como um vetusto endeusamento, já que aos deuses foi marcada falta de comparência. Se perguntassem não tinham de especular. Da imagem devolvida pelo espelho não fermenta autocontemplação. É só a carência de inventariar as rugas, medindo-as mentalmente. Para confirmar que envelhece. Porque tem medo de envelhecer.
Como se pode envelhecer se não houver o atestado de madurez? Não somos como os frutos que, na fronteira entre a madurez e a decadência, se precipitam à espera da podridão que os transforme em chão. Exige-se uma certificação pessoal, o método indispensável para aferir o envelhecimento. Em vez de ser fruto à espera de ser devorado pelo chão, demora-se no espelho. A contar rugas. A fazer de conta que tira as medidas à fotogenia.
Um amigo advertiu que este método apressa o envelhecimento. Quem anda à procura do mecenato do envelhecimento desperdiça o tempo que não se repete. Todos envelhecemos. Está inscrito na ordem do dia. À espera de um dia que deixe de ser a diurna feição remoçada.
Como sempre dispensou advertências em tom paternalista, e os sucedâneos dos administradores de ajuda ao próximo (um registo abusivamente cunhado “autoajuda”), continuou a importunar as horas inaugurais com a cartografia do rosto. Os geógrafos das almas cuidavam das dores restantes (interiorizou a certeza, para travar a exuberância de perguntas malparidas que não conseguia domar). Limitava-se a rasurar as arestas avivadas por uma ruga crescente, como se adulterasse o retrato tirado sob os auspícios do espelho matinal.
Sempre podia anunciar, aos que se importunassem com a sua meã condição, que todo o tempo emprestado ao espelho era uma pose estudada: não sendo fotogénico, fazia os possíveis por ficar bem na fotografia. Os demais que cuidassem da (sua) posteridade.
Não se tirem as medidas pelas urgências que amputam a respiração. Nunca chegamos tarde – nunca-chegamos-tarde, se for preciso repetir à exaustão, até se enraizar a ideia que o tempo não foge; nós é que vamos a fugir do tempo.
Toda a circunstância se move dentro das suas muralhas. Do lado de fora, as conspirações. E as conspirações não podem ser atendidas. Aos conspiradores deixamos a sua geografia e a sua gramática, os vultos que açambarcam a sua lucidez. Não queremos ser colonizados por um bando de canibais dos sentimentos que esvoaça demencialmente, em voos rasantes, procurando obliterar as ideias fecundas que sobem à superfície. Não queremos ser reféns de ninguém.
Este é o paradoxo do tempo: damo-lo como rarefeito e, todavia, ele não se extingue à nossa passagem. É assíduo o movimento que apressa as empreitadas na exata medida da escassez do tempo. Sabemos que o tempo corre contra nós e nós, apalavrando a vingança, arremetemos com toda a fúria contra o tempo. Evocamos uma tempestade em que movimentos de sentido contrário chocam frontalmente. Os despojos apadrinham um cenário devastador: de tanto conspirar contra o tempo que conspira contra nós, somos vítimas da sua inexorável sentença. A nossa soberba é condenada à exaustão do tempo, que se vira do avesso para nos ensinar a sua contingência. Queremos apressá-lo e ele move-se mais depressa do que os nossos desejos.
Talvez ainda vamos a tempo de saber que o tempo é mecenas de um vagar circunspecto. Daremos as boas vitualhas aos druidas que prometerem intemporalidade. Não merecemos esse logro. Atrás da cortina, sem o medo dos que pressentem a finitude do tempo, o tempo move-se num vagar que o aproxima da intemporalidade.
Dessa marcha retesada, guardemos o tempo puro que espera pelas nossas mãos. Guardemos janelas anfitriãs que convocam a ilusão da demora, no que a demora tem de propedêutico. Guardemos as palavras avivadas que suspendem o colóquio do tempo.
Nem que fosse cinturão negro, não conseguia domar as forças sinistras que o cercavam. Tinha a certeza que não vinham do além (procurou saber, mas não encontrou as coordenadas GPS do além; o além não tinha grandes probabilidades de existência). Os dias hipotecados desarrumavam a lucidez que ainda sobrava. Andava aos solavancos, de socalco em socalco, refém da lei do acaso.
Furtivamente, um lampejo de sol rompeu a densa cortina de nevoeiro. Se fosse penhor de outros preparos, diria ser uma epifania: do raio de luz desceria a imagem de uma santa para abençoar o trágico descaminho que se tornara a sua vida. Trágica, mas abençoada por uma figura beatífica, a vida respirava melhor.
Era dia para acreditar no que não acreditava. De manhã, acordou a acreditar no pai natal. Faria os possíveis para não silenciar a ilusão da meninada que dezembra com a esperança de o pai natal lhe calhar em sorte. Se fosse preciso, oferecer-se-ia para pai natal ambulante numa daquelas operações de cosmética de lautas superfícies comerciais que enganam os tolos só para fazerem mais bolos. Mas não importava, o soez capitalismo que nos desalma. O que importava era o gáudio da criançada enquanto não toma as rédeas do pensamento e destrona o pai natal do pedestal entretanto estilhaçado.
Não tinha barba cã e hirsuta; estava difícil ser contratado como pai natal ambulante. Ainda invocou a desdieta de que herdara, contra a sua vontade, adiposidades que o tornaram mais lateral – assim como assim, o pai natal nunca fez dieta, é uma personagem roliça. Os mecenas do marketing não ficaram convencidos. Era muito novo para ser um pai natal convincente, até com um disfarce com o dedo dos melhores peritos.
Tentou, ao menos. Às vezes, nem a perseverança, nem o melhor voluntarismo, desmentem os factos. Pudessem outras ser as costuras do saber para conseguir ser, por um dia que fosse, o que acreditava não existir. Para o curriculum ia uma nova entrada: candidatura a pai natal ambulante fracassada pelo desmazelo dos mandantes. Essa garantia era imprescritível.
Todas as personagens alinhadas no corrimão onde decorre a sociedade; todas bem compostas, instruídas nos mandamentos da convivência saudável, respondendo ao imperativo gregário; todas aprovando a condescendência recíproca, desvalorizando a mediocridade para se elevarem ao olimpo; todas disfarçando mitomanias relapsas em nome da verdade fraudulenta; todas, fingido serem exemplares peças montadas num xadrez formidável à espera da bênção derradeira quando o apuro de uma vida inteira for feito sem que seja numa estrada sinuosa; todas, tão impecavelmente obedientes, orgulhosas num deleite de quem se empenha na vontade de outros.
E ele, deposto ante os fabricados paradigmas do grupo coeso, com um esgar cínico descendo até ao canto da boca, como se aprouvesse o desafio dos costumes estabelecidos, como se só fosse feito de aprovação interna se corrompidos fossem os mandamentos acautelados pelos demais, todo um estuário dissidente. Ele, enfant terrible, espalhando a confusão intelectual, perguntando o proscrito, encontrando a pedra angular para a atirar em cheio em cima da ferida aberta, metendo o dedo a fundo até sentir o osso puído, os furúnculos da existência renegados. Ele, que procura as teias apaioladas em sinal do tempo esquecido só para avivar as feridas sem cicatriz. Ele, que profere os impropérios que se dizem em público em vez de ser nas costas da consciência.
Por sua vontade, o encontro com os demais é o rastilho que ateia a combustão: não foi feito para ser esconderijo de si mesmo, tanta é a vontade de suprimir a hipocrisia cortante e, a eito, terraplanar uma mão cheia de sindicalistas dos bons costumes. Chamam-lhe, com bondade a rodos, agente provocador. Ele, ciente do ardil, exacerba a reação. Diz coisas que nunca pensou dizer, afrontas à prova de bala, esbracejando fantasmas mal disfarçados dos curadores da normalidade. Diz, em contravenção da bondade dos outros, que não é agente provocador. Chamem-lhe pária, misantropo incorrigível. Dele dissessem ser mau e irremediável o feitio. Não poupassem nos impropérios e no diagnóstico sem direito a recurso.
Queria que o encomendassem ao exílio. Para, quando lá chegasse, enviar um recado aos algozes pelo favor feito. E avisou: vocês, que nadais em incomensurável boa consciência, heis de ser povoados com a intemporalidade do meu espectro. Não tereis sonos aquietados jamais. Vou colonizar os vossos sonhos, torná-los pesadelos, à distância.
Se tivesse o número do telemóvel da Carmo Afonso, juro que telefonava. E com urgência. Sexta-feira, 8 de dezembro, está a concurso uma bolada no Euromilhões (240 milhões de euros, menos os 20% da ordem à conta do, por enquanto, Medina). Podia ser que ela me segredasse a chave premiada antes de ser sorteada. Fá-lo-ia porque a Carmo tem dons divinatórios. Em vez de perguntar qual é o oráculo que a unge de tantas certezas antes do tempo, pedia-lhe o favor de confidenciar a chave premiada do Euromilhões.
A Carmo usa uma argumentação simplista que não é compatível com a sua instrução universitária e com a experiência profissional nas barras dos tribunais. A eloquência é distintiva dos causídicos. Mesmo quando distorcem o raciocínio com petulância, conseguem ser mais convincentes do que afamados vendedores de rua ou agentes imobiliários (quando são de boa cepa). A Carmo meteu na cabeça que o PSD vai casar com o Chega e que teremos os fascistas de regresso ao poder a partir de 10 de março de 2024. A Carmo tem legitimidade para temer que um partido de linhagem fascista ponha as patas no poder; eu que, ó desgraçado, trago em mim o vício incorrigível de ser de direita, inquieta-me saber que o partido do Ventura pode chegar a uma votação revelada pelas sondagens recentes. Daí a tresler os acontecimentos só porque a Carmo tem a certeza (e como não: ela adivinha o futuro) que os descendentes de Salazar estão fadados para governar e isso é pior do que os piores pesadelos da Carmo, vai um só passo.
Como nunca votei PSD (e não será desta também), não sou procurador deste partido e do seu líder. E mesmo nutrindo antipatia por Montenegro (os líderes do maior partido da oposição têm sido, juntamente com o Ventura, o seguro de vida do PS), não posso deixar de perguntar se o Montenegro precisa de fazer um desenho para sossegar o espírito sobressaltado da Carmo sobre a hipótese de o Ventura meter as patas no poder. Mas a Carmo sabe, porque sabe, que o Montenegro está a mentir e que já assinou um pacto secreto para devolver o governo às direitas (ou, usando a fórmula dos sectores onde a Carmo milita, “a direita”, que assim se ostraciza melhor a partir de uma generalização que é conveniente para esbracejar fantasmas). A Carmo é tão sectária que nem hesita em dar razão a um dirigente fascista que, num debate televisivo, acusou o Montenegro de andar a enganar os eleitores, porque sem o Chega não chega ao poder: dar razão a um fascista pertence ao domínio das impossibilidades constantes, mas é aberta uma exceção porque não interessa desmascarar um mentiroso que conta uma verdade conveniente às hostes da Carmo.
Para que não sejamos, eleitores “de direita”, defraudados nas próximas eleições, tomemos em consideração o conselho da boa samaritana Carmo: “votar à direita é votar numa mentira”; e até a Iniciativa Liberal, um “partido engraçadista” (morte ao humor, morte ao humor – ou a versão menos canónica do “não se brinca com coisas sérias”, a menos que o autor seja um dos nossos e, eu sei lá, parodie o hino nacional), não escapa à sentença certeira da Carmo em forma de interrogação excruciante: “[e] servem para alguma coisa?”, aproveitando a oportunidade para condenar a falta de democraticidade interna deste partido sem se rir enquanto atesta o partido comunista como um partido (à boa maneira boaventuriana) de “elevada intensidade democrática” (se me é permitida a glosa).
Só não entendo por que a Carmo não defende que “a direita” seja banida de vez e, de caminho, os canhestros eleitores que insistem em não reconhecer as virtudes e a bondade inata das esquerdas sejam condenados ao exílio. A Carmo, previdente e outra vez metendo as mãos na sua presciência, deixa o aviso: “Eu acho que deveríamos pensar melhor no que nos espera se deixarmos isto andar.” Quem nos avisa, nossa amiga é.
No caso do Loff, nem o PS é ilibado de cumplicidade com “a direita”. Só falta decretar, sob a pena taumaturga do Loff, o homem que deve ter sonhos húmidos com o dia em que tomasse posse como censor público em nome dos operários e de todos os oprimidos, que o PC, e só o PC, era admitido nesta mirífica democracia singular (e singular tem uma intencional conotação aritmética denotativa da “democracia de elevada intensidade” que é apanágio de um regime em que os que mandam são um número ímpar inferior a três).
Já não temos o camarada Vasco Granja para doutrinar os petizes que, aproveitando a distração dos papás, iam sendo instruídos acerca dos benefícios do comunismo, esse porta-estandarte da democracia. Nunca sabe se não anda por aí um herdeiro do Vasco para segredar à criançada, em programas infantis: “cuidado, menino(a)(e), cuidado que vem aí o papão da direita para te comer.”
Eu tenho um sonho: ser convidado para a boda da Carmo com o Loff. Para que continuem, por muitos e bons anos, a escrever. Para que eu saiba que devo ir pelos antípodas do Loff e da Carmo.
Esta é a narrativa que se deslaça no campanário dos justiceiros: seremos todos alguém, um dia depois de deixarmos de ser ninguém. Os objetos passam a fazer sentido. As horas são cantadas com um compasso diferente. Coisas temidas que despertencem, figuradas como estrelas cadentes que fogem da sua cauda feérica mas não magoam ninguém.
“Tu vais ser alguém”, juram os procuradores dos nomes alheios, os que se movem na sombra para ditarem as personagens admitidas a concurso, para que através da sua intercessão possam as peças ser movidas no tabuleiro. Alguém repete, com o vagar posto nas sílabas, como se assim tivesse de ser para ser convincente: “tu-vais-ser-al-guém”. Parece que a jura interessa mais a quem a faz do que aos que dela podem tirar partido.
Quando a proclamação soa, o memorial da certeza não é inaugurado. Qualquer um pode dizer qualquer coisa. Quase sempre, o escrutínio acaba no oblívio, por mais que tenha sido ajuramentado com o selo oficial dos notários que tutelam o público espaço. A memória fragiliza-se. Fica por conta dos estilhaços que travam o seu paradeiro. Qualquer um se levanta da desmemória sem a distinguir a mentira.
As pessoas depositam as poupanças do porvir naquelas palavras sortilégio que adoçam os ouvidos: “tu vais ser alguém”. Não entendem que não são alguém quando alguém aviva a esperança que deixem de ser ninguém. Não se importam de ser ninguém. Estão submersos na jura de serem alguém quando o serem ninguém tiver prescrito. A promessa impede-os de saberem ser ninguém. Não pedem contas ao passado. Estão anestesiados pelo futuro. E não sabem nada do futuro, nem do apeadeiro em que serão seus inquilinos.
Os alguém dentro de dias não perguntam se a condição é irreversível, não querem saber se passar a ser alguém é um direito adquirido que não tolera retrocesso. Se estivessem de atalaia às fragilidades do mundo, à pura imperfeição das pessoas quando decaem para a pusilanimidade, desconfiavam. Iriam à estrada da História resgatar os tantos casos de alguém que o deixou de ser ao ter caído em desgraça.
Os recursos agitam-se nas bermas da vida. É aí que sobem a palco os nomes incógnitos. Dizendo, em solenes e repetitivas proclamações, que vamos todos ser alguém quando não deixamos de ser ninguém, sob o disfarce de direitos encenados.
Não é por intercedência avulsa que amanhece o torpor. Diz-se que a manhã é a mátria da letargia. Até a claridade é timorata: a neblina deitando-se sobre o horizonte, descendo quase até tocar o solo, os ossos embebidos na humidade pegajosa como se adestrasse o freio da vontade. A manhã é o lugar onde se terçam os despojos. Os despojos herdados de pesadelos acabados e de todo o passado que precisa de equinócio.
Não faço por menos: a diferença tem estatuto próprio, é o periscópio que assegura paradeiro entre as cortinas densas que anestesiam o olhar. Não se diga que a ausência de sentidos é compensada pelo labirinto sideral que se promete em conversa diletante. Os logros só se descobrem depois de consumados, mas podemos manter uma desconfiança metódica. Dirão os aventureiros, os que se desembaraçam de arneses e mergulham no precipício, que o risco não compensa a apatia. Dirão que se não ousarmos ficamos aprisionados nas baias do presente, sem sabermos como se traduz a emancipação dos corpos passados.
Dizem os precatados que não podemos ser meros espectros do tempo ido. Para não sermos reféns dos despojos que vamos deixando em idioma aberto. Eu digo que os despojos são atirados contra o tempo vindouro, são o bumerangue que desfaz a estultícia que estiver à espera, à má-fila, entre duas páginas do calendário em tempo contínuo. Ninguém diga que não tem despojos depostos na sua zona franca: serão farsantes, mecenas de uma indigência que não entretece um paradeiro.
Levanto-me dos despojos com a mesma lucidez com que partilho a inauguração do dia com a alvorada desinquieta. Os labores do dia não se armadilham de véspera. Não cuidam da ossatura dos despojos, como se aí fôssemos encontrar a fonte fresca que sacia o desejo do dia. Os verbos puídos dissolvem-se na bruma; estão à espera de serem despojos em cima dos despojos.
Os olhos marejados inspiram a maresia do entardecer. A bússola virada do avesso ilude as farsas do dia – ou pelo menos, assim acreditamos. Por este andar, amanhã os despojos aumentaram de perímetro. Não faz mal. Só quem nunca desobedeceu à litania dos profetas é que desconhece os seus pessoais despojos.
Sobre o corrimão usado, a mão amparava o seu desgaste. A madeira coçada do corrimão era a metáfora da pele exaurida, um mapa de rugas, diligente. As escadas rangiam (na altura em que foi feito, os prédios não tinham direito a elevadores). Os ossos faziam coro. As pernas titubeavam, com medo que um degrau cedesse – ou com medo, fingido, de que uma perna falhasse e o peso do corpo traduzisse a lei da gravidade.
Anoitecia, depois de vir da rua. Não sabia por que fora à rua. Descer e subir os três andares é tortuoso. Mas foi. Andou pelas ruas limítrofes, sem reparar nos rostos, sem dar conta das lojas que faziam o apuro do dia, já com a porta entreaberta, como quem anuncia ao cliente “estamos quase a fechar, volte amanhã.” Os cafés continuavam abertos, a clientela do costume. A penumbra deitava-se sobre os dorsos cansados por um dia de trabalho. Os olhares embaciados eram um queixume em forma de silêncio. Lembrava-se como era antes da reforma. O cancro da rotina – o cancro da rotina, como maquiniza os Homens. Somos os arquitetos da nossa própria desumanização. (Ou nem se devia falar de humanização.)
Era a hora do jantar. Em que preparos se põe um homem que faz o jantar para uma pessoa? Fizera muitas vezes esta interrogação enquanto ficava parado na cozinha, à espera de ter vontade de preparar o jantar. “Preparar o jantar” para uma pessoa é um eufemismo. Os ossos da solidão contorcem-se com as dores de um nevoeiro que entra pela casa e vai apagando a claridade, como as manchas de humidade que colonizam partes da parede e do teto. Não deu conta do jantar. Não saberia dizer (se lhe perguntassem) como soube a refeição. O medo da noite consecutiva dilui os sentidos. Reza para que a noite seja um lampejo e que amanheça depressa, sem o contágio de pesadelos.
A manhã foi no centro de saúde. Uma consulta de rotina. As pessoas deviam ser poupadas à infâmia da decadência. Há velhos que resistem, procuram muletas nos médicos e na reforma inteira que vai para medicamentos. Resistem. Querem continuar a viver medicados, seguindo as ordens de médicos que mais parecem seus procuradores legais. Não passam de fingidores; fingem que vivem. Jura: “nunca hei de chegar a esta decadência. Se o destino não me levar antes, tratarei do assunto.” Aquela vida é a morte sonâmbula. Deus existiria se não pactuasse com esta torpeza.
Já ia avançado o dia quando a boca se desenferrujou do silêncio. Pediu uma refeição rápida no snack bar da esquina, “não, é para levar para casa.” A voz custou a arrancar, como naqueles carros velhos, reféns da humidade matinal, que tossem antes de o ar chegar ao carburador. Deixou-se arrastar vagarosamente pelas escadas acima – a refeição chegaria fria à sala de estar, mas não importava. Uma pessoa nestes preparos come para disfarçar a solidão. A vida vai com um hausto.
Em tempos leu: “os Homens não foram feitos para a solidão.” A não ser que sejam criados no palco onde se encontram com a solidão e ela seja prisão perpétua.
Fat Boy Slim, “Praise You”, in https://www.youtube.com/watch?v=ruAi4VBoBSM
Ninguém sabia onde secavam as cuecas do czar. Nem nos dias soalheiros, depois da tortura do Inverno, quando as empregadas desempoeiravam a roupa lavada secando-a ao sol. A roupa estendida ao sol era diversa. Mas não estavam as cuecas do czar – havia umas cuecas, mas não eram do czar (asseguravam as raparigas ao espião disfarçado de jornalista).
As teorias começaram a abotoar. O czar não usa cuecas: era a teoria preferida dos que se entregam à lascívia, os rebeldes que não respeitam as instituições e rompem o consenso que ensina não ser admissível parodiar quem de tão sério deve estar à prova de escárnio. O czar ou tinha alergia nas partes baixas e não conseguia vestir cuecas, ou era pouco sensível à higiene e gastava as cuecas até à prescrição.
Os estadistas e os que encarnam a pose solene quando se trata dos assuntos de Estado rejeitaram a hipótese. Sua excelência é tão diligente na higiene pessoal como o comum dos mortais – e já não precisávamos de saber mais nada. As cuecas do czar prescrevem ao fim de um dia. Não são renovadas. São queimadas para nenhum espião descobrir o ADN do czar.
Os conspiracionistas deram o seu melhor (ou o pior, consoante o ângulo). Descobriram, enquanto estavam com a habitual febre pueril, que o czar tem as credenciais embebidas nas cuecas. Estão lá todos os segredos do Estado, porque nem ao espião mais perseverante, ou ao agente secreto mais criativo, congemina torturar o czar privando-o das cuecas. O método é um segredo (e os segredos de Estado são as coisas mais públicas, ou não fossem os espiões tão diligentes na revelação dos mesmos).
Os espiões têm azar se palmilharem o terreno onde seca a roupa do czar. Lá nunca seria o sítio onde o czar deixa a marinar segredos bem escondidos (do passado e do presente, esses segredos; ou do futuro, se for habilitado para exercer em nome de oráculos só ao alcance de iluminados). Ainda bem. Uma das concubinas do czar segredou que sua excelência fede dos pés e fede ainda pior das partes baixas. Só alguém que quisesse traduzir uma náusea queria saber do paradeiro das cuecas do czar.
O czar lançou-se às feras, um certo dia. Chegou ao conhecimento que estava inebriado pelo sortilégio das auroras boreais e pediu, em missão diplomática, que o país onde as luzes solares dançam o deixassem estabelecer morada provisória, só para ver uma aurora boreal. Do país hospedeiro mandaram dizer: indeferido o pedido de instalação temporária do czar, as cuecas são obrigatórias.