8.12.23

Enfant terrible

Yves Tumor, “Parody”, in https://www.youtube.com/watch?v=AqID2bQSnY4

Todas as personagens alinhadas no corrimão onde decorre a sociedade; todas bem compostas, instruídas nos mandamentos da convivência saudável, respondendo ao imperativo gregário; todas aprovando a condescendência recíproca, desvalorizando a mediocridade para se elevarem ao olimpo; todas disfarçando mitomanias relapsas em nome da verdade fraudulenta; todas, fingido serem exemplares peças montadas num xadrez formidável à espera da bênção derradeira quando o apuro de uma vida inteira for feito sem que seja numa estrada sinuosa; todas, tão impecavelmente obedientes, orgulhosas num deleite de quem se empenha na vontade de outros.

E ele, deposto ante os fabricados paradigmas do grupo coeso, com um esgar cínico descendo até ao canto da boca, como se aprouvesse o desafio dos costumes estabelecidos, como se só fosse feito de aprovação interna se corrompidos fossem os mandamentos acautelados pelos demais, todo um estuário dissidente. Ele, enfant terrible, espalhando a confusão intelectual, perguntando o proscrito, encontrando a pedra angular para a atirar em cheio em cima da ferida aberta, metendo o dedo a fundo até sentir o osso puído, os furúnculos da existência renegados. Ele, que procura as teias apaioladas em sinal do tempo esquecido só para avivar as feridas sem cicatriz. Ele, que profere os impropérios que se dizem em público em vez de ser nas costas da consciência.

Por sua vontade, o encontro com os demais é o rastilho que ateia a combustão: não foi feito para ser esconderijo de si mesmo, tanta é a vontade de suprimir a hipocrisia cortante e, a eito, terraplanar uma mão cheia de sindicalistas dos bons costumes. Chamam-lhe, com bondade a rodos, agente provocador. Ele, ciente do ardil, exacerba a reação. Diz coisas que nunca pensou dizer, afrontas à prova de bala, esbracejando fantasmas mal disfarçados dos curadores da normalidade. Diz, em contravenção da bondade dos outros, que não é agente provocador. Chamem-lhe pária, misantropo incorrigível. Dele dissessem ser mau e irremediável o feitio. Não poupassem nos impropérios e no diagnóstico sem direito a recurso.

Queria que o encomendassem ao exílio. Para, quando lá chegasse, enviar um recado aos algozes pelo favor feito. E avisou: vocês, que nadais em incomensurável boa consciência, heis de ser povoados com a intemporalidade do meu espectro. Não tereis sonos aquietados jamais. Vou colonizar os vossos sonhos, torná-los pesadelos, à distância. 

Nem que seja via Zoom.

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