Ty Segall and the Freedom Band, “Harmonizer” (live at PALP Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=vZoEKg119WE
As palavras não contam todas. Os dias, também não. Não há a ideia de desperdício nos dias que desaparecem do inventário do tempo. É como as pessoas que se cruzam com a nossa vida. Se somos gregários, é porque dependemos uns dos outros. Esta medida de instrumentalidade recíproca desmonta o mito da convivência espontânea entre os semelhantes. Somos gregários porque precisamos de ser. Não somos gregários.
Tomo um café porque a cafeína ateia a concentração de que preciso para avançar pelo dia fora. O dono do estabelecimento serve-me o café. Não o faz por indulgência. Precisa de mim para manter o negócio, para manter o seu sustento. Se o dono do café entrasse em negação e não quisesse saber do negócio e do seu sustento, podia destratar-me. E eu tinha de adiar a necessária dose de cafeína até ao estabelecimento mais próximo.
Antes, podia responder à boçalidade do empresário por atropelar a boa convivência entre semelhantes e o código de conduta dos estabelecimentos comerciais. Ou podia responder ao destrate com a indiferença de quem vira as costas e procura o café mais próximo. Na primeira hipótese, o gregário desafiava o misantropo. Na segunda, respeitava o misantropo reagindo com uma dose homeopática de misantropia. Na primeira hipótese, seria mais fácil o gregário tornar-se misantropo do que o contrário. Na segunda hipótese, respondia à misantropia com a misantropia que é o idioma que o misantropo compreende. Suspendia a minha gregária condição. Revelava a minha condição genuína.
Exerço uma profissão porque, não sendo milionário nem cultivando a ascese, preciso de recursos para me sustentar. E, ou, preciso de uma finalidade para ter uma fundamentação ontológica. A lógica utilitarista é um lugar-comum. Há quem esteja contrariado, desapegado do mínimo proveito pessoal na profissão exercida. Há quem consiga construir um lugar de conforto por dentro dos deveres profissionais, seja por adesão (vingando o utilitarismo, outra vez), por convicção, ou por mera encenação (provocada ou apenas como produto da sua resignação).
No exercício da profissão interajo com pessoas. Presto um serviço que obedece a uma finalidade. Enquanto tal, sigo um código ético que tem duas fontes: a coletiva, que pode resultar de um código contratualizado pela prática social; e a interna, respondendo aos quesitos da consciência. Adiro aos códigos de ética, ou apenas ao que corresponde ao menor denominador comum (o interior). Sei que é um dever associado à condição gregária, como membro de uma comunidade que deve adotar, e seguir, normas de convivência. Faço-o espontaneamente, porque aceito essa condição como parte da minha integração no todo. Ao obedecer a esta lógica, admito a não espontaneidade da adesão, como ela não é autêntica. É predeterminada pela tomada de consciência dos custos da não adesão. Investir num ensimesmar que se subleva contra o estabelecido pode resultar na exclusão pelos outros. A exclusão que pode ditar a perda do meio de subsistência. Sigo-me por um estalão utilitário que despromove a genuinidade do ser gregário.
No exercício da profissão sou membro de uma comunidade. Articulo com os meus pares. Articulo com os destinatários do serviço que presto. E tenho uma responsabilidade atestada a um nível superior, que tem o grupo como procurador. Sou gregário, sou um ser social. Se somos parte de uma comunidade, devemos ter uma conduta que sublime o gregário que há em nós. A alternativa é a hostilidade, a degradação do ambiente de que somos uma personagem, o confronto – a beligerância por meios não bélicos, a emergência de um egoísmo atroz que descompensa a natureza humana ao atirar cada um de nós, consumidos pela coragem eidética, para um lugar de não pertença, para a insularidade que é a antítese do gregarismo.
Somos gregários por necessidade. Por estimarmos que ficamos pior ao negarmos a gregária condição. Não somos gregários por firmeza. Só não somos ilhas até ao limite dessa condição pelo peso utilitarista que nos faz arquear perante o indeclinável contacto com os outros. Não independemos uns dos outros. Mas esse não é o pressuposto da condição gregária: é a admissão de culpa de que se gregários não formos, estamos condenados a uma sobrevivência penosa.
É útil sermos “uns para os outros”. Não é uma condição inata à nossa natureza. Somos lobos. Lobos só eufemisticamente alcateia. Muitas vezes, lobos de nós mesmos, ao pesarmos a pertença como um obstáculo à idiossincrasia insular.
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