Os ventos cruzados embaciavam a gramática dos sentidos. Queriam-se juízos claros sobre o quotidiano do mundo, as suas adversidades e as maravilhosas descobertas que traduziam um futuro risonho. Queriam-se estrofes que prendessem a atenção e ficassem imortalizadas como citações em lugar de destaque. Mas um anoitecer imorredoiro persistia nas arcadas do tempo, como se uma leve desconfiança murmurasse verbos incendiados.
A miríade de coisas que passavam sob o radar da atenção colhia a dimensão do tempo. Não era de anestesia que se falava: os espíritos abertos tinham todos os dias um choque frontal com a miríade de coisas e de pessoas e de palavras que eram como forasteiros que logo a seguir deixavam de o ser. Dos livros que levantam a hipótese da desconfiança metódica (por causa do criterioso escrutínio da antropologia), pairava uma sensação perpétua sobre a verosimilhança do que era dito. Era preciso saber se eram confiáveis as palavras que embatiam na embocadura do ser, se eram confiáveis as pessoas que as entoavam. Se não havia mentiras a enfeitar as palavras e se as mentiras tinham cores sombrias, ou eram meras impressões que não ficam para memória futura.
Não se pensasse que a empreitada era dúctil. A verdade é volúvel, tão presa à subjetividade e à contingência de um momento e da sua circunstância. Os profetas da verdade só podiam apresentar credenciais atestadas pelo passado, o que dizia tudo sobre a capacidade dos oráculos. Não se lhes confiavam as teias da verosimilhança. Nem a ninguém. Não havia embaixadores da verdade, mas havia multidões militantes da mentira. O barómetro vinha de dentro de cada um; do mesmo modo que a iliteracia da mentira dependia do compromisso de cada um, o que a tornava uma verdade instável.
Para adornar a complexidade do assunto, a mentira não é objeto de reação simétrica: alguns, com propensão para a mitomania, ou apenas porque deixaram de se importar com impossibilidades, não desaprovam o cânone da mentira. E a mentira, agradecida, percebeu que tinham sido alçadas as fronteiras, passando de chão para chão, colonizando os dias uns atrás dos outros, fazendo seu o nome dos mitómanos.
Para conforto de alguns, foi certificado que no espaço público, e no privado também, nem tudo era mentira.
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