19.12.23

Passaporte

mutu, “A Seita”, in https://www.youtube.com/watch?v=2_jDzYWaLY0  

A medalha dizia a cor do peito. A cor de tudo. Mas a cor não importava. As cores prescreveram. De cada vez que olhava para o vale falava com a medalha. Esperava que a medalha dissesse algo. Um verbo contínuo, oxalá. Mas era a angústia que se revelava depois de o nevoeiro ser apeado do vale. Não queria pagas de outra forma. Não aceitava que fosse uma mártir da injustiça.

Às vezes, a manhã dizia, em suaves murmúrios, que devia mudar de lugar. Ela pedia explicações. A manhã continuava a murmurar, sem hesitar nas palavras entoadas com uma pura articulação das sílabas. A manhã dizia: “não levas mais nada deste lugar, a solidão já tomou conta de ti e temo que não aguentes o terrível peso da solidão”. Ela olhava para o chão. Procurava aconchego no chão, não procurava respostas. Era um reflexo condicionado: os costumes ensinam que a melancolia traz as pessoas cabisbaixas. Seria pior se demandasse uma resposta ao céu.

“A pior prisão é o pensamento.” Não sabia onde lera isto. A frase esmagava-se contra o peito condoído e era nessa altura que se agarrava à medalha, como se fosse um analgésico. Não precisava de doutores que cuidassem de uma alma como a dela, uma alma cheia de arestas impronunciáveis, arestas avivadas pela coreografia dos dias que desaguam num labirinto. 

Voltaram a ecoar as palavras da manhã. E muito embora a manhã já tivesse sido deposta, as suas palavras continuavam a ser um pressentimento que não conseguia esconjurar. Ir dali para fora, mas para onde? Substituir uma solidão por outra? As solidões de diferentes lugares são equivalentes, ou medram em diferentes sangues, fornecem diferentes estados de alma? Precisava de passaporte para poder ser mecenas do seu exílio. Não sabia como justificar o passaporte: se confessasse que o lugar de agora se esgotava, podia não ser convincente para o passaporte. Ou podia meter-se ao caminho do lugar ermo da cidade onde tudo se passa às escondidas da luz para obter um passaporte forjado.  Ao menos, poupavam-na às justificações.

Na manhã depois, acordou com um estranho sabor na boca. As palavras que subiam ao pensamento tinham um cheiro a maresia como só as manhãs acabadas de inaugurar conseguem dizer. Era refém do pensamento fortuito – o seu pensamento parecia-lhe sempre fortuito. Os remos estendidos não desequilibravam o pequeno barco que a transportava pelo mar imenso. “O pensamento é a escola da solidão” – e destas palavras não havia dúvidas sobre a autoria, eram da sua lavra. 

Precisava de um passaporte. Só para se enamorar do passaporte, da ideia de passaporte. Para se curar de si mesma. Só a ideia de exílio chegava para uma súbita e incondicional lealdade ao lugar de agora. O passaporte seria uma oportunidade deixada em levitação. Um salvo-conduto, contra a tirania do pensamento.

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