21.12.23

O senhor doutor esqueceu-se da caneta

 

Massive Attack, “Butterfly Caught”, in https://www.youtube.com/watch?v=g45PgMJMqLY

O senhor doutor chegava atrasado, sistematicamente atrasado. As consultas tinham hora marcada, mas a pontualidade era só para os pacientes. Os pacientes tinham de ser muito pacientes com a falta de pontualidade do senhor doutor. E com a sua proverbial arrogância.

O senhor doutor estava montado em cima de uma pressuposto a seu favor: a saúde dos pacientes dependia de si. Sabia que há alturas em que a saúde dos pacientes entra em roda livre e nem os seus putativos milagres conseguem aplacar as maleitas. Enquanto mantivesse os pacientes reféns de um misticismo que tem o senhor doutor como protagonista, a relação desigual continuaria até o senhor doutor meter os papeis para a reforma. Nunca a ideia de poder fora da órbita de controlo teve tamanha representação.

Um dia, o senhor doutor bebericava o habitual whisky pós-jantar enquanto espreitava a televisão. Era um debate sobre saúde pública. Um dos convidados argumentava que os futuros médicos deviam ser treinados para a ética médica, para não repetirem os erros dos antepassados que estabelecem uma relação assimétrica com os pacientes. O senhor doutor remexeu-se na cadeira, como se tivesse sido acometido por uma súbita alergia subcutânea. Pegou no telemóvel e conseguiu intervir no debate, desfazendo o interlocutor: “não, não, os médicos não precisam de aprender ética; eles são os tutores da sua própria ética. Que topete, o de quem sugere tamanha coisa!”

No dia seguinte, um paciente entrou no consultório. À entrada, teve a ousadia de protestar: “a consulta está atrasada uma hora e meia.” O senhor doutor ficou sem reação, estupefacto com a insolência do paciente. Não demorou a ultrapassar a inação: “se estiver incomodado, pode sair imediatamente.” Foi o que o paciente fez. À saída, despiu-se do disfarce que tinha envergado. Era uma encenação. O paciente não era a identidade do paciente que estava na agenda para a consulta das seis e meia. Era o interlocutor do programa da televisão, o da ética obrigatória para estudantes de medicina. Tomou a identidade do paciente das seis e meia, só para atestar a indiferença do senhor doutor (que lhe tinha chegado aos ouvidos).

A secretária do senhor doutor chamou-o à receção. O senhor doutor bramiu: ela é que devia ir ao consultório do senhor doutor, homessa! A secretária insistiu, a medo e acabrunhada: “por favor, senhor doutor...é no seu interesse”. O senhor doutor fez-se vagarosamente ao caminho, contrariado, arrastando os cento e dez quilos de destempero de hábitos. Ao chegar à receção, não reconheceu o homem que o aguardava. Este, sem perceber se o senhor doutor fingia não o reconhecer, num ato de pesporrência que quadrava com a sua fama, disparou: 

Não está a ver quem sou. Eu ajudo: sou a pessoa que acabou de sair do consultório. E sou aquele que ontem o senhor distratou na televisão. Vim aqui só para confirmar o que eu desconfiava. E para confirmar a ideia que defendi ontem na televisão. Aliás, até me ajudou a mudar de ideias: devia ter defendido que os médicos encartados devem-se sujeitar a uma reciclagem de ética de cinco em cinco anos. Para desfazer de vez essa arrogância entranhada.

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