5.12.23

Despojos

PJ Harvey, “Down By the Water” (live at Oslo), in https://www.youtube.com/watch?v=WJq2AkzkC2o

Não é por intercedência avulsa que amanhece o torpor. Diz-se que a manhã é a mátria da letargia. Até a claridade é timorata: a neblina deitando-se sobre o horizonte, descendo quase até tocar o solo, os ossos embebidos na humidade pegajosa como se adestrasse o freio da vontade. A manhã é o lugar onde se terçam os despojos. Os despojos herdados de pesadelos acabados e de todo o passado que precisa de equinócio.

Não faço por menos: a diferença tem estatuto próprio, é o periscópio que assegura paradeiro entre as cortinas densas que anestesiam o olhar. Não se diga que a ausência de sentidos é compensada pelo labirinto sideral que se promete em conversa diletante. Os logros só se descobrem depois de consumados, mas podemos manter uma desconfiança metódica. Dirão os aventureiros, os que se desembaraçam de arneses e mergulham no precipício, que o risco não compensa a apatia. Dirão que se não ousarmos ficamos aprisionados nas baias do presente, sem sabermos como se traduz a emancipação dos corpos passados.

Dizem os precatados que não podemos ser meros espectros do tempo ido. Para não sermos reféns dos despojos que vamos deixando em idioma aberto. Eu digo que os despojos são atirados contra o tempo vindouro, são o bumerangue que desfaz a estultícia que estiver à espera, à má-fila, entre duas páginas do calendário em tempo contínuo. Ninguém diga que não tem despojos depostos na sua zona franca: serão farsantes, mecenas de uma indigência que não entretece um paradeiro. 

Levanto-me dos despojos com a mesma lucidez com que partilho a inauguração do dia com a alvorada desinquieta. Os labores do dia não se armadilham de véspera. Não cuidam da ossatura dos despojos, como se aí fôssemos encontrar a fonte fresca que sacia o desejo do dia. Os verbos puídos dissolvem-se na bruma; estão à espera de serem despojos em cima dos despojos. 

Os olhos marejados inspiram a maresia do entardecer. A bússola virada do avesso ilude as farsas do dia – ou pelo menos, assim acreditamos. Por este andar, amanhã os despojos aumentaram de perímetro. Não faz mal. Só quem nunca desobedeceu à litania dos profetas é que desconhece os seus pessoais despojos. 

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