7.12.23

Um formidável exercício de História do futuro (e outras seduções de Carmo Afonso & Manuel Loff )

The Jesus and Mary Chain, “jamcod”, in https://www.youtube.com/watch?v=x3_NOCiRbII

Todos sabemos que nada disto será cumprido, até porque já foi tudo feito, nesses exatos termos, nos Açores. Quem votar à direita sabe exatamente ao que vai. Não existe suspense ou mistério.” 

Carmo Afonso, in Público, 04.12.23, página 40.

Se tivesse o número do telemóvel da Carmo Afonso, juro que telefonava. E com urgência. Sexta-feira, 8 de dezembro, está a concurso uma bolada no Euromilhões (240 milhões de euros, menos os 20% da ordem à conta do, por enquanto, Medina). Podia ser que ela me segredasse a chave premiada antes de ser sorteada. Fá-lo-ia porque a Carmo tem dons divinatórios. Em vez de perguntar qual é o oráculo que a unge de tantas certezas antes do tempo, pedia-lhe o favor de confidenciar a chave premiada do Euromilhões. 

A Carmo usa uma argumentação simplista que não é compatível com a sua instrução universitária e com a experiência profissional nas barras dos tribunais. A eloquência é distintiva dos causídicos. Mesmo quando distorcem o raciocínio com petulância, conseguem ser mais convincentes do que afamados vendedores de rua ou agentes imobiliários (quando são de boa cepa). A Carmo meteu na cabeça que o PSD vai casar com o Chega e que teremos os fascistas de regresso ao poder a partir de 10 de março de 2024. A Carmo tem legitimidade para temer que um partido de linhagem fascista ponha as patas no poder; eu que, ó desgraçado, trago em mim o vício incorrigível de ser de direita, inquieta-me saber que o partido do Ventura pode chegar a uma votação revelada pelas sondagens recentes. Daí a tresler os acontecimentos só porque a Carmo tem a certeza (e como não: ela adivinha o futuro) que os descendentes de Salazar estão fadados para governar e isso é pior do que os piores pesadelos da Carmo, vai um só passo.

Como nunca votei PSD (e não será desta também), não sou procurador deste partido e do seu líder. E mesmo nutrindo antipatia por Montenegro (os líderes do maior partido da oposição têm sido, juntamente com o Ventura, o seguro de vida do PS), não posso deixar de perguntar se o Montenegro precisa de fazer um desenho para sossegar o espírito sobressaltado da Carmo sobre a hipótese de o Ventura meter as patas no poder. Mas a Carmo sabe, porque sabe, que o Montenegro está a mentir e que já assinou um pacto secreto para devolver o governo às direitas (ou, usando a fórmula dos sectores onde a Carmo milita, “a direita”, que assim se ostraciza melhor a partir de uma generalização que é conveniente para esbracejar fantasmas). A Carmo é tão sectária que nem hesita em dar razão a um dirigente fascista que, num debate televisivo, acusou o Montenegro de andar a enganar os eleitores, porque sem o Chega não chega ao poder: dar razão a um fascista pertence ao domínio das impossibilidades constantes, mas é aberta uma exceção porque não interessa desmascarar um mentiroso que conta uma verdade conveniente às hostes da Carmo.

Para que não sejamos, eleitores “de direita”, defraudados nas próximas eleições, tomemos em consideração o conselho da boa samaritana Carmo: “votar à direita é votar numa mentira”; e até a Iniciativa Liberal, um “partido engraçadista” (morte ao humor, morte ao humor – ou a versão menos canónica do “não se brinca com coisas sérias”, a menos que o autor seja um dos nossos e, eu sei lá, parodie o hino nacional), não escapa à sentença certeira da Carmo em forma de interrogação excruciante: “[e] servem para alguma coisa?”, aproveitando a oportunidade para condenar a falta de democraticidade interna deste partido sem se rir enquanto atesta o partido comunista como um partido (à boa maneira boaventuriana) de “elevada intensidade democrática” (se me é permitida a glosa). 

Só não entendo por que a Carmo não defende que “a direita” seja banida de vez e, de caminho, os canhestros eleitores que insistem em não reconhecer as virtudes e a bondade inata das esquerdas sejam condenados ao exílio. A Carmo, previdente e outra vez metendo as mãos na sua presciência, deixa o aviso: “Eu acho que deveríamos pensar melhor no que nos espera se deixarmos isto andar.” Quem nos avisa, nossa amiga é.

Os endemoninhados direitistas não têm direito a descanso, pois há quem veja muito além dos espectros e, sem gaguejar na armadilha dos conspiracionismos, delata os maus fígados de todos os que não se arregimentam à esquerda (outra vez, em coro: “a direita”). O Loff é outro intelectual que não capitula no ofício de nos prestar um serviço público incalculável. Para que ninguém fique desatento, o Loff aviva a lembrança: “como ocorreu com Trump, Bolsonaro e Meloni, ou com Mussolini e Hitler” (...) [eis a notável comparação do exímio historiador!], “homens como Wilders e Milei só chegam ao poder com o apoio e em coligação com a direita tradicional”. 

No caso do Loff, nem o PS é ilibado de cumplicidade com “a direita”. Só falta decretar, sob a pena taumaturga do Loff, o homem que deve ter sonhos húmidos com o dia em que tomasse posse como censor público em nome dos operários e de todos os oprimidos, que o PC, e só o PC, era admitido nesta mirífica democracia singular (e singular tem uma intencional conotação aritmética denotativa da “democracia de elevada intensidade” que é apanágio de um regime em que os que mandam são um número ímpar inferior a três).

Já não temos o camarada Vasco Granja para doutrinar os petizes que, aproveitando a distração dos papás, iam sendo instruídos acerca dos benefícios do comunismo, esse porta-estandarte da democracia. Nunca sabe se não anda por aí um herdeiro do Vasco para segredar à criançada, em programas infantis: “cuidado, menino(a)(e), cuidado que vem aí o papão da direita para te comer.”

Eu tenho um sonho: ser convidado para a boda da Carmo com o Loff. Para que continuem, por muitos e bons anos, a escrever. Para que eu saiba que devo ir pelos antípodas do Loff e da Carmo.

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