29.12.23

Terceiros pensamentos

Ólafur Arnalds, “Back to the Sky” (Lambert Piano Rework), in https://www.youtube.com/watch?v=OoN11Mo6nXk

1

Os arsenais podiam ser feitos de groselhas. Todo o sangue derramado não seria sangue, apenas um sumo incumbido de provar as almas dos atingidos. Se não houvesse maneira de converter os párias, forjar-se-ia um modo de eliminar os seus arsenais que tiram vidas a sério. Nem que fosse à força de um sortilégio sem denominação.

2

Os cavalos pastam nos prados. Não foram feitos para jazerem, mortos, num campo de batalha que deve pertencer aos humanos que se entretêm a serem dementes. Os morteiros que ceifaram o cavalo haviam de ser devolvidos, e com juros, aos militares que os dispararam.

3

Os velhos dançavam com a leveza do seu vagar. Olhavam-se nos olhos, amorosamente, como os mais novos não conseguem olhar. O único desejo era o mais valioso de todos: continuarem no enlevo dos braços recíprocos, a dançar. Com a certeza de que aquela dança se eternizava no exílio das memórias. Não queriam mais nada. Apenas jurarem, um ao outro, que para tamanho amor não existe morte no dicionário.

4

Os lobos desterrados porfiavam pela noite fora. À noite, a probabilidade de humanos é menor; é mais seguro para os lobos (os animais mais misantropos que há). Juntam-se em alcateia, saltarilhando de cumeada em cumeada, sob o testemunho do luar arrebatado. Antes que seja manhã, cada lobo segue numa direção diferente. Deixam de ser alcateia. Comprometem-se com a (sua) natureza.

5

Os jovens executivos, vulcões de ambição quase a entrar em erupção, ocupam-se das coisas materiais. O verbo dionisíaco é enriquecer. De preferência, cedo. Têm medo que a vida seja efémera. Se for efémera, não tiram partido da orgia material com que sonham acordados. Um poeta, também aspirante, coincide no mesmo restaurante, na mesa do lado. Teve mote para uma epopeia, e de graça. Os jovens extasiados com a ditadura dos números e das divisas não são capazes de declamar um poema de cor, nem que seja modesto em estrofes.

6

A cordialidade está em vias de extinção. Há quem proponha que seja desqualificada do dicionário, passando a integrar o museu arqueológico. A desconfiança metódica é a fronteira que ninguém consegue cruzar. É um comportamento que adultera a coincidência de vontades. Um oportunista mais oportunista do que os outros gaba-se de enganar toda a gente e de arregimentar a seu favor o troféu do mais esperto. Há quem tenha comiseração dele e do seu séquito. Muito embora estejam em vias de extinção. O que é uma candeia que alimenta a esperança no futuro da espécie.

Sem comentários: