4.12.23

A solidão que tosse sobre o lençol

Nick Cave and the Bad Seeds, “Ghosteen Speaks” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=MeQqKt-Q3l0

Sobre o corrimão usado, a mão amparava o seu desgaste. A madeira coçada do corrimão era a metáfora da pele exaurida, um mapa de rugas, diligente. As escadas rangiam (na altura em que foi feito, os prédios não tinham direito a elevadores). Os ossos faziam coro. As pernas titubeavam, com medo que um degrau cedesse – ou com medo, fingido, de que uma perna falhasse e o peso do corpo traduzisse a lei da gravidade.

Anoitecia, depois de vir da rua. Não sabia por que fora à rua. Descer e subir os três andares é tortuoso. Mas foi. Andou pelas ruas limítrofes, sem reparar nos rostos, sem dar conta das lojas que faziam o apuro do dia, já com a porta entreaberta, como quem anuncia ao cliente “estamos quase a fechar, volte amanhã.” Os cafés continuavam abertos, a clientela do costume. A penumbra deitava-se sobre os dorsos cansados por um dia de trabalho. Os olhares embaciados eram um queixume em forma de silêncio. Lembrava-se como era antes da reforma. O cancro da rotina – o cancro da rotina, como maquiniza os Homens. Somos os arquitetos da nossa própria desumanização. (Ou nem se devia falar de humanização.)

Era a hora do jantar. Em que preparos se põe um homem que faz o jantar para uma pessoa? Fizera muitas vezes esta interrogação enquanto ficava parado na cozinha, à espera de ter vontade de preparar o jantar. “Preparar o jantar” para uma pessoa é um eufemismo. Os ossos da solidão contorcem-se com as dores de um nevoeiro que entra pela casa e vai apagando a claridade, como as manchas de humidade que colonizam partes da parede e do teto. Não deu conta do jantar. Não saberia dizer (se lhe perguntassem) como soube a refeição. O medo da noite consecutiva dilui os sentidos. Reza para que a noite seja um lampejo e que amanheça depressa, sem o contágio de pesadelos.

A manhã foi no centro de saúde. Uma consulta de rotina. As pessoas deviam ser poupadas à infâmia da decadência. Há velhos que resistem, procuram muletas nos médicos e na reforma inteira que vai para medicamentos. Resistem. Querem continuar a viver medicados, seguindo as ordens de médicos que mais parecem seus procuradores legais. Não passam de fingidores; fingem que vivem. Jura: “nunca hei de chegar a esta decadência. Se o destino não me levar antes, tratarei do assunto.” Aquela vida é a morte sonâmbula. Deus existiria se não pactuasse com esta torpeza.

Já ia avançado o dia quando a boca se desenferrujou do silêncio. Pediu uma refeição rápida no snack bar da esquina, “não, é para levar para casa.” A voz custou a arrancar, como naqueles carros velhos, reféns da humidade matinal, que tossem antes de o ar chegar ao carburador. Deixou-se arrastar vagarosamente pelas escadas acima – a refeição chegaria fria à sala de estar, mas não importava. Uma pessoa nestes preparos come para disfarçar a solidão. A vida vai com um hausto.

Em tempos leu: “os Homens não foram feitos para a solidão.” A não ser que sejam criados no palco onde se encontram com a solidão e ela seja prisão perpétua.

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