26.12.23

Sobre a ciência de escrever uma carta ao Pai Natal

Santigold, “Disparate Youth” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=3tUBVU73ziM

(Como se ensina um jovem a escrever ao Pai Natal – pois os jovens podem emergir como ícones, são figuras míticas de que o mundo órfão de causas tanto precisa, mas tem de haver alguém na retaguarda a desenhar o pensamento do jovem.)

Pai Natal, seja lá quem tu fores e seja qual for o teu paradeiro:

Devo começar por apresentar credenciais: não acredito que tu existes. Não me convenceram, logo em tenra idade, naquela idade em que começamos a ter das coisas uma inteligibilidade consciente, que tu existias. Percebi, ainda mal me tinham caído os dentes, que és a fachada da conspiração do capitalismo que se serve da tua figura para se perpetuar. E nem o facto – decerto congeminado pelos conspiradores a soldo dos piores capitalistas – de apareceres com fatiota vermelha e farfalhuda barba de cãs, dando a entender que és a personificação moderna do velho bom Marx, me iludiu. Em abono da verdade, sempre me disseram (especialmente os que me inventaram como produto mediático) que estava muito à frente da mediana da minha faixa etária. Mesmo não acreditando na tua existência, dirijo-me a ti porque sei que as cartas que te são endereçadas passam pelo crivo dos censores que são os soezes procuradores do capitalismo que não cessa de agravar as desigualdades entre os que tudo têm e a turba que vive à míngua. E tu, Pai Natal, sob essa aparência querubínica de um bom Marx reconvertido para espalhar o bem entre os mais novos, como se fosse preciso doutriná-los para serem eternamente vassalos do consumismo que pereniza o grande capital, és cúmplice de um mundo corrupto. Não sei se te deste conta, se é legítimo o parentesco ideacional com o velho bom Marx, se entendeste como és o idiota útil de um sistema económico profundamente injusto. 

Quero-te interpelar para um desafio: no próximo ano, tu – e todos os teus franchisados que estão espalhados pelo mundo fora – deviam fazer greve ao Natal. Deviam recusar o traje típico que, em minha iluminada opinião, até consubstancia um atentado à estética. Deviam interiorizar os pergaminhos do vosso sósia, saindo à rua para denunciarem os malvados capitalistas que se servem da multidão alienada para continuarem a oprimi-la, sem que ela tenha consciência do papel cúmplice a que se prestam. 

Nesse natal, caro Pai Natal, tu serias o intérprete da revolução de que tanto precisado está o mundo. Nesse dia, serei o primeiro a humildemente reconhecer que, afinal, tu existes. 

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