Esta é a narrativa que se deslaça no campanário dos justiceiros: seremos todos alguém, um dia depois de deixarmos de ser ninguém. Os objetos passam a fazer sentido. As horas são cantadas com um compasso diferente. Coisas temidas que despertencem, figuradas como estrelas cadentes que fogem da sua cauda feérica mas não magoam ninguém.
“Tu vais ser alguém”, juram os procuradores dos nomes alheios, os que se movem na sombra para ditarem as personagens admitidas a concurso, para que através da sua intercessão possam as peças ser movidas no tabuleiro. Alguém repete, com o vagar posto nas sílabas, como se assim tivesse de ser para ser convincente: “tu-vais-ser-al-guém”. Parece que a jura interessa mais a quem a faz do que aos que dela podem tirar partido.
Quando a proclamação soa, o memorial da certeza não é inaugurado. Qualquer um pode dizer qualquer coisa. Quase sempre, o escrutínio acaba no oblívio, por mais que tenha sido ajuramentado com o selo oficial dos notários que tutelam o público espaço. A memória fragiliza-se. Fica por conta dos estilhaços que travam o seu paradeiro. Qualquer um se levanta da desmemória sem a distinguir a mentira.
As pessoas depositam as poupanças do porvir naquelas palavras sortilégio que adoçam os ouvidos: “tu vais ser alguém”. Não entendem que não são alguém quando alguém aviva a esperança que deixem de ser ninguém. Não se importam de ser ninguém. Estão submersos na jura de serem alguém quando o serem ninguém tiver prescrito. A promessa impede-os de saberem ser ninguém. Não pedem contas ao passado. Estão anestesiados pelo futuro. E não sabem nada do futuro, nem do apeadeiro em que serão seus inquilinos.
Os alguém dentro de dias não perguntam se a condição é irreversível, não querem saber se passar a ser alguém é um direito adquirido que não tolera retrocesso. Se estivessem de atalaia às fragilidades do mundo, à pura imperfeição das pessoas quando decaem para a pusilanimidade, desconfiavam. Iriam à estrada da História resgatar os tantos casos de alguém que o deixou de ser ao ter caído em desgraça.
Os recursos agitam-se nas bermas da vida. É aí que sobem a palco os nomes incógnitos. Dizendo, em solenes e repetitivas proclamações, que vamos todos ser alguém quando não deixamos de ser ninguém, sob o disfarce de direitos encenados.
Sem comentários:
Enviar um comentário