23.12.24

Comer o gelado com a testa

Black Keys (feat. Alice Cooper), “Stay in Your Grave”, in https://www.youtube.com/watch?v=M513zr-J5Cg

Às vezes, apetecia ir atrás do vento. Nem que parecesse tonto. Como se fosse errante e tivesse demitido qualquer possibilidade de planos – o vento seria o GPS efémero, o doutrinador de um destino ao acaso.

Outras vezes, dava-me para não especular. Talvez dissessem que levitar o corpo no meio do aluvião de fantasias não é um delito, que quase todos os poetas vivem pelo menos dez andares acima do solo, mais perto da lua. Talvez dissessem que não especular é um punhal assestado na criatividade e que, assim como assim, o mundo (aquele a que chamam a realidade) é tão execrável que contrabando não será se vivermos pelo menos meia dúzia de andares acima do rés-do-chão.

Por isso, cumpria os desprocedimentos e dedicava-me a delirar. Por exemplo: ontem um cão terá sido avistado a ostentar um colar de pérolas. Muito embora o saber popular advirta que não é boa política entregar pérolas a porcos, o prontuário é omisso quanto à possibilidade de um canídeo envergar um colar de pérolas. No caso do porco, é compreensível a precaução popular: dos suínos se diz que deglutem tudo o que lhes aparecer no caminho e as pérolas não são como as trufas que eles fuçam com diligência (muito embora as trufas estejam ao preço das melhores pérolas de viveiro).

 Ou, por exemplo, o rapaz pós-cueiros que já sabia de cor os nomes dos reis e dos presidentes da república mesmo antes de saber ler. Os progenitores ostentavam a criança com orgulho, como se a proeza lhes fosse creditada. A meio da exibição, apareceu um desmancha-prazeres. Questionou a criança sobre uma matéria banal (o número de habitantes do país), seguindo-se uma pergunta alternativa para o caso de falhar a anterior (o que diz a tabuada à multiplicação de seis por oito). A criança disse nada e o desmancha-prazeres atirou-se, com indisfarçável cinismo, ao diletantismo dos pais.

Na assistência, um castiço tentava levar à prática o desafio de comer um gelado com a testa. Teimoso, e incapaz de reconhecer que só os calvos podem ensaiar a demanda, apresentou-se (nome e ocupação: guarda-rios nas horas vagas) sem conseguir esconder o cabelo besuntado pelo gelado. Aos costumes disse nada, enquanto o gelado de baunilha pingava do cabelo, dando a entender que não estava por dentro da pendência entre os pais do falso prodígio e o desmancha-prazeres que acabara de desmascarar a insolência dos progenitores do rapaz – já ia a altercação a caminho de uma medição de força física entre os dois varões, pois então. Limitou-se a proclamar, com a dicção de um radialista, as sílabas devidamente entoadas para nenhuma ficar órfã, que amanhã era dia de estreias no cinema e que estava ansioso por saber os filmes a estrear.

Afinal, o Inverno só começava em janeiro.

20.12.24

A partir de uma folha em branco

Wet Leg, “Ur Mum” (live at Reading Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=HJSIzxW04fE

Nascituras, as palavras que se deitam na folha em branco; ou a virginal feição da folha que é desarmada quando a tinta negra das palavras percutidas começa a disfarçar a alvura. A folha em branco nunca sabe como são as palavras que nela procuram morada. Fica à mercê de uma vontade singular, de um estado de alma, de um voto de protesto, de um pedido, de uma história, de uma descrição, da representação de uma imagem decantada pelo olhar, do mundo que se revela a partir de uma viagem, de um poema, das palavras ora assintomáticas ora significativas, das palavras como sargaço apanhado ao acaso.

A partir de uma folha em branco, e enquanto olho para ela, sinto a mesma linhagem inaugural da folha. As palavras escritas têm um passado, não colidem com as palavras nascituras. Elas acompanham as virtudes e os deméritos, as angústias e as expressões de alegria, os sobressaltos e a maresia que pressente a acalmia, a noite que se recolhe nas fronteiras do estuário ou o dia que, como a folha em branco, encontra na madrugada a sua inauguração. A partir da folha em branco tudo é possível enquanto as palavras não se fazem ao caminho e, debruadas a tinta negra, começam a romper os poros da folha em branco. As palavras recebem o incentivo inaugural da página por estrear. São, como a página em branco, inaugurais.

Depois, o estatuto muda. A folha, dir-se-ia, contaminada pelas palavras que depõem o seu estatuto virginal, que por vezes não são contaminação; são o bálsamo que enriquecem a folha. Ela serve de cais para as letras que sobem pelo braço até ordenarem a coreografia da mão que as verte em forma de palavras. Convertendo fragmentos de pensamento em texto que o modera. 

Às vezes, não é preciso uma folha em branco: um pedaço de papel arrancado a uma toalha de restaurante, um recanto de um jornal, o verso de um bilhete de comboio, o avesso de um documento fotocopiado chegam para que, puídos, sejam remoçados através das palavras que lhes são apostas. Mas é na folha em branco que se opera o sortilégio da escrita. Que se resgata a folha de um vazio sepulcral: a folha em branco convida à articulação de palavras que servem um propósito e são as palavras que emprestam sentido à folha em branco, depois de deixar de o ser.

19.12.24

Do avesso

In Tua Nua, “Take My Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=eKa3vS09jzc

Lido do avesso: as costuras ficam dentro do labirinto, não se compõem enquanto for noturno o palco a que sobem. Avezam-se as coisas outras no penhor que se despenha no desfiladeiro. Não é o precipício que intimida. É a revelação de um avesso. O avesso costuma ser avesso à notoriedade. E nós não conhecemos o avesso.

Lido com o avesso: como uma gramática reinventada que espera pelo seu tempo, antes que se desfigure no novo sentido das palavras. Podem conter entrelinhas, sentidos empossados, depois de relidas as palavras por dentro do que eram sentidos ocultos. A tradição dos sentidos restaurados só é possível depois de lidas as palavras do avesso. Esta é a lida projetada.

Não são perenes, os estados de alma. Oxalá a matriz do pensamento não fosse rígida e não nos envergonhasse a humildade de reconhecer inflexões e retrocessos, reinterpretações e indecisões. Somos um viveiro de diferenças. Diferimos uns dos outros. E na linha descontínua do tempo diferimos em diferentes momentos, como se o tempo cobrisse diferentes versões do eu. A capacidade para sermos procuradores de um avesso interior é um dom que convoca a lucidez exigente. Convoca alguma audácia.

Na passerelle entre os sentidos ambíguos, descosemos as palavras como se estivéssemos a separá-las em gomos. Vamos ao avesso da matéria formulada, atiramos as palavras contra as convenções, aventuramo-nos, se preciso for, nas ambiguidades subliminares, porque queremos devastar o seu sentido orgânico. Ao vestirmos um avesso às palavras, tornamo-las inorgânicas. Processamos a sua riqueza escondida atrás da cortina baça. 

É lido do avesso para ser dito do avesso. Um compasso de espera no uso espartano do tempo, enquanto se avivam as hipóteses de reinvenção das palavras e dos estados de alma. Não somos mecenas da adulteração nem espectadores passivos da decadência. Sondamos as possibilidades. Abrimos janelas que estavam fechadas há tempo sem memória. Abrimos outras que descobrimos ao caminhar no fino fio sobre o precipício, tomados por uma anestesia que só caduca quando os pés deixarem de tremer. 

À partida, desafiamos os sentidos estabelecidos, o entendimento dos estados de alma, os códigos zelosamente obedecidos. À chegada, não sabemos onde estamos. Esse é o sortilégio dos avessos.

18.12.24

O rufia

Michael Kiwanuka, “Floating Parade” (live from Wimbledon), in https://www.youtube.com/watch?v=z57b2hK3YGE

Não foi ele que juntou ao seu nome a alcunha de rufia. Foi responsabilidade dos outros. Se lhes fosse perguntado, do rufia diriam que é legítima a alcunha porque ele boicota a concórdia, tem instintos misantropos e não concorre para o bem-comum. Diriam, ainda, que o rufia é de trato descortês, verte boçalidade a rodos, assume uma desconfiança sistemática no próximo e no que não é próximo, é alguém em quem não se pode confiar nem quando a assinatura consta de um contrato. Um rebelde sem causa conhecida a não ser a dissidência sistemática e provocadora.

A provocação como método é um savoir faire do rufia. Tem o condão de incomodar até os que têm sangue réptil e não estão acostumados ao desassossego causado pelos outros. Desenvolveu um intrínseco espírito de contradição, capitalizando as divergências em proveito próprio. O rufia não admite em público, mas os que o conhecem superficialmente (não há quem o conheça para além do verniz embotado) suspeitam que amiúdes vezes o rufia finge defender o contrário do que defende só para ativar o espírito de contradição. Detesta que os outros concordem com ele. E se, num afã de contradições sucessivas, acaba por se contradizer, não é incómodo que o leve a dar parte de fraco. Já o ouviram a dizer, para se desembaraçar de uma contradição estridente, que tinha mudado de ideias e era assunto encerrado.

As pessoas evitam o rufia. Como ele não evita as altercações, até as que possam envolver violência, os que o conhecem pela rama não se importam que ele passe à frente nas filas, que não apanhe os dejetos que o casal de cães rafeiros deixa no passeio, que grite com um turista desprevenido que desconhece a sua má rês, que seja inconveniente com senhoras numa exibição de misoginia incorrigível, que suba a voz em pleitos ao ser acusado de ser desagradável, e que arregace as mangas e proponha, a oponentes desavisados, que a pendência seja resolvida à custa do bombardear dos punhos atiçados em pose de boxeur.

O que ninguém conhece é o avesso do rufia. A bondade escondida, a filantropia com os pobres, as causas que subscreve sob anonimato, a imensa biblioteca que guarda num quarto propositadamente reconvertido, o esmero gastronómico de que só ele tem proveito, o muito mundo que calcorreou sem disso fazer alarde, a surpreendente fé.

Já que tanto insistem em apelidá-lo de rufia, ele faz questão de honrar, até aos seus terminais dias, o cognome. As pessoas nunca entenderam esta generosidade do rufia.

17.12.24

As portas fechadas

Queens of the Stone Age, “Goodbye Yellow Brick Road”, in https://www.youtube.com/watch?v=sEnYOAD6ZAA

Removia os pesares distantes que patrulhavam a porta. Não eram essas as bênçãos de que precisava. Afugentamos a angústia no perímetro dos outros, esquecendo que a filantropia começa em nós. As feridas não se querem abertas. Devemos o cuidado das cicatrizes enquanto é tempo. Enquanto há tempo.

Às vezes parece que a memória conspira, intercedendo a favor de memórias avivadas que deviam continuar suspensas. O presente é açambarcado pelo mergulho no passado; essa é uma hipoteca todavia temporária. Mas todo o tempo passado no resgate dessas memórias é tempo roubado. Tempo presente que fica à porta, desperdiçado no galanteio de reminiscências que se autonomizam da vontade. Se fosse apenas pela lucidez, a vontade conseguia resistir ao apelo insondável que reabilita memórias que só deviam pertencer ao olvido.

Reivindiquei a teoria das portas fechadas. Se as portas se entreabrem quando franqueiam a existência de algo que reabilita a existência, ou quando supõem um fôlego que anima a vida, elas devem ser fechadas se impedirem a entrada de elementos conspirativos que desassosseguem as almas. As portas devem ser seletivamente fechadas. Como devem ser metodicamente abertas. Consoante as circunstâncias e o juízo que delas seja feito.

A pendência fica subordinada à lucidez; melhor: aos critérios usados para a lucidez não ser um disfarce, tornando-se lucidez legítima, com mecanismos de auto-verificação, para não ser atraiçoada por uma invisível adulteração. O pior é confiarmos à lucidez aquilo que ela não é capaz de garantir por não ser lucidez legítima. Devemos ser evitar a simples subcontratação da vontade na lucidez, para não sermos reféns de uma lucidez fingida que desacautela um juízo acertado.

Mas não estamos a salvo da arbitrariedade. Da lucidez ao acaso, ora matéria-prima que nos ajuda a impedir a emergência das memórias desaconselhadas, ora uma conspiração industriada por vultos que cercam a memória e a sublevam na hipoteca do tempo presente. A lucidez atraiçoa-nos quando deixa vir à superfície as memórias que a lucidez autenticamente lúcida saberia reprimir. Ou a lucidez, tal com o nós, é incapaz de se dotar da perfeição necessária para fazer a triagem, e também tem direito às suas distrações.

16.12.24

Só os amantes sobrevivem

Cocteau Twins, “Cherry-coloured Funk”, in https://www.youtube.com/watch?v=GUQ8qexN3bU

O tempo é uma ditadura. Rígida e austera, não oferece segundas hipóteses. Não somos como os gatos, que beneficiam de sete vidas. À medida que o corpo se move no fio do tempo, amanhece uma amnésia do passado. O esquecimento é um tributo à imobilidade dos corpos, como se não perdessem capacidades, imunes à decadência. 

Corríamos o dia de lés-a-lés – metêramos na cabeça que aquele era um dia de direta, a cama dispensou os serviços mínimos do sono. E dizíamos: não queremos a cerimónia ateada pelas indulgências que o remorso apura. Não queremos o arrependimento. Fazemos de tudo por o dispensar. Ele há muita gente que já morreu e ainda não deu conta. Morreu e ainda não fizeram as exéquias. Nós somos tutelados pelo amor, não desistimos da vida porque desistiríamos do amor. O amor é a maior prova de vida. 

Cedemos ao amante uma parte que o preenche. Buscamos no amante um rumorejo que se completa de poesia, invadindo o corpo por dentro, tingindo o sangue com o sangue quimérico do amante. Não queremos deixar de ser os amantes-mecenas que, escondidos no seu reduto, guardam segredos sortílegos. Ao contrário dos vivos-mortos, os amantes prosseguem a sua vida radiosa. Embebem-se de vida, torcem o braço à apatia convocada pela iteração do tempo, celebram o festim na coregrafia onde os corpos são combustão, na cumplicidade das almas, na troca espontânea de olhares, no idioma privativo que dispensa palavras. 

Os amantes exorcizam o futuro que anoitece nas margens do enigma. Não fazem juras, não querem a paga em juros que depois não podem cumprir. Combinam as mãos entrelaçadas com o riso abundante de quem descobre todos os dias um quinhão do mundo por descobrir. São reféns da vida: não descuidam a morte, tão extasiante é a fogueira em que se move a vida. 

A extinção pode conspirar contra as vidas merecedoras, mas os amantes sabem, enquanto procuradores da sobrevivência, que haverá um amanhã a romper com o acervo dos dias que compõem a vida. Não capitulam, hesitam quando têm de hesitar, mas não se abandonam enquanto amantes num altar que trespassa a existência. E dizem: oxalá o tempo fosse devolvido à procedência para fazermos tudo igual; para voltarmos a ser os amantes que vestem a tocha que tece os gramas de luz de que se faz o sol inteiro.

13.12.24

Razão fumada

The Jesus and Mary Chain, “Reverence” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=FCYOSvZ-dYY

O fumeiro exige tempo e um fumo condizente. Dizem que também exige frio, como se o frio fosse responsável pela produção de fumo alimentado pelas fogueiras que, na ausência do frio, não são ateadas – o que não passa de um mito, porque as fogueiras são sempre ateadas para a produção do fumeiro. O fumeiro também exige paciência: quem antecipar a colheita percebe que a qualidade do fumeiro fica aquém do esperado. 

A razão devia ser fumada, no sentido gastronómico do termo. Sujeita a uma cura de tempo, para não soçobrar no destempo e na superficialidade. O grande problema da razão – para além de haver muita gente, gente de mais, a reclamá-la como seu património e com exclusão das outras partes – é de nascer prematura. Processada na vertigem do momento, estorva a lucidez. O pior é que as pessoas formulam uma razão, a sua razão, e não estão dispostas (ou preparadas) para recuar. Não refazem a razão, nem admitem que foi uma consideração precipitada e que a razão assiste a outro.  

(Sem entrar na grande fraqueza da razão, quando os seus tutores a alindam com o manto de objetividade, pois a razão é subjetiva. Contém a sua negação, a menos que se aceite a sua relativização: a razão é aquela, porque partiu de certos pressupostos e se alicerçou num raciocínio congruente. As conclusões em que se embasa a razão coroam este processo. Uma razão assim delimitada é válida para uma pessoa, ou para um grupo que se revê nessa contextualização da razão.)

Agora que o tempo é voraz, e tudo se empresta à efemeridade, ainda menos se justifica a razão instantânea. Não tem tempo para amadurecer, como o fumeiro que precisa de um demorado estágio sob os efeitos do fumo. A razão espontânea pode ser um estado de alma, uma reação intempestiva, um enamoramento com as aparências, o desvio pelo acessório enquanto o essencial fica a marinar na lonjura do tempo, um rumor que depressa se extingue. 

A razão assim congeminada inflaciona-se, detém-se na epiderme, incapaz de mergulhar no vagar do tempo que é exigível para que a razão – uma, tão subjetiva, razão – se ofereça como válida e como proposta de entendimento de um fenómeno ou de um comportamento. Mas sempre como proposta, sem ambicionar a ser definitiva. A razão não é como os víveres que só podem ser consumidos se estiverem frescos. Uma razão em estado bruto fica a léguas de ser assimilada. A razão exige um processo de maturação. Como o fumeiro, deve ser exposta à maturidade do tempo e ao fumo a que só conseguem reagir os que são pacientes.

12.12.24

As histórias por contar

Tunde Adebimpe, “Magnetic”, in https://www.youtube.com/watch?v=WWiGeU1WPW8

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Os intermináveis segundos em que os dados atirados não caem na mesa do jogo estão na inversa proporção da velocidade da queda no precipício.

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O narrador não é imparcial – protestava a personagem, interrompendo a peça. O narrador, cabisbaixo, confirmava com o seu silêncio o voto de protesto (que ficou lavrado na ata dos espectadores).

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Roça o desagradável, a maneira como vossa excelência se me dirige. Tê-lo-ei em conta quando for preciso ajustarmos contas, dizia o deputado ao deputado de um partido rival. À noite, foram vistos em desamena boémia pelos bares limítrofes à Assembleia.

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Que te seja benigno o vento que amanheceu. Usa-o para esfoliares as ideias, que estão carregadas de podridão. Não me peças o favor de dizer que parte das ideias precisas de reciclar. A resposta é tão fácil.

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Tinha por cobertor a noite singular, uma desmemória criteriosa, o refúgio num labirinto escanção, a porta puída que não deixava de ter serventia, as palavras atapetadas que ficavam pendidas no canto da boca, o beijo rastejante prolongando o afeto, a matéria incandescente que sufragava o gelo das mãos, a embaixada do dia.

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A razia das almas cruas não olha a nomes. Está tudo tão devastado que não sobra esperança. Não sobra uma ideia de tempo. Há quem ande no meio dos escombros. Procura uma janela, mesmo que esteja estropiada. Não acredita que estejamos colonizados pelos párias.

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Rodavam as cabeças decepadas por ausência de pensamento. Tinham sido avisadas com tempo. Preferiram a indiferença, o desfardo de ter alguém a pensar por eles.

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Não se encostavam a outras pessoas, nem quando os transportes públicos iam apinhados, ou nas escadas rolantes à saída da estação central em hora de ponta. A distância exigida era (mesmo) higiénica.

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Um contrato-promessa assinado sem solenidade determinava que os envolvidos seriam mecenas da alacridade, promoveriam a desconfiança para ninguém ter vantagem sobre os demais, e diriam de si serem pessoas boçais porque a cortesia ficou sepultada no século XIX. Oxalá ninguém respeite o contrato-promessa.

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Não digas palavras proscritas: contrabando, desembargo, ressentimento, pureza, iracundo, talvez mentira. Substitui-as por palavras que te “sobem ilegíveis à boca” e dá-lhes moldura, a procuração da sua perenidade.

11.12.24

O sexo pequeno dos machos-alfa que juram retaliar com sexo contra as mulheres de que não gostam

Electric Wizzard, “Barbarian”, in https://www.youtube.com/watch?v=O-GhkfrfqZ0

Na peça de teatro “Homens Hediondos”, de David Foster Wallace, o ator que protagoniza o monólogo teoriza sobre dois arquétipos de homem: o porco básico e o grande amante. O porco básico serve-se sexualmente das mulheres, que não passam de objetos para o seu prazer egoísta. O maior amante é o que centra todo o seu egoísmo na mulher, vinculando-a ao prazer de que o maior amante se confessa serviçal. São duas e opostas maneiras de um homem exteriorizar egoísmo no ato sexual. No primeiro caso, porque a mulher é desprezada no altar do prazer egoísta do porco básico. No segundo caso, como tudo é encenado pelo maior amante para colocar a mulher no centro do palco dos prazeres carnais, reprimindo o seu próprio prazer, não é desprendimento nem altruísmo a favor da mulher: é uma forma de inverter o egoísmo e de carregar na mulher a assimetria de um ato em que os dois deviam ter prazer.

A evocação da peça de teatro vem a propósito da notícia da condenação do neonazi Mário Machado por ter incentivado à violação de mulheres de esquerda. A violação transcende o mero ato sexual, pois a violência usada e a subjugação da mulher à vontade do violador não correspondem à natureza do ato bilateral quando o sexo é consensual. Mas uma violação também tem a componente sexual. Não se consegue separar uma violação da sua natureza sexual. 

Parto deste pressuposto para a análise dos Machados do couto lusitano, esses machos alfa que ainda poluem a nossa existência. O que inquieta é haver alguém que jura sexo (não consentido) como forma de punição de quem deles diverge. É sexo como castigo, não sexo como prazer – eventualmente (e já se perceberá o porquê do advérbio condicional) –, não sexo como prazer a (pelo menos) dois. Quem se situa neste palco, considera legítimo forçar uma mulher, obrigando-a ao ato sexual para a castigar e humilhar, afirmando a posição de força do homem que recorre à violação. É um sexo punitivo e primitivo que subverte a ideia de sexo como consequência do consentimento a (pelo menos) dois, do sexo como sinalagma, sem violentar a vontade de um dos envolvidos. 

Usar o sexo como arsenal de castigo é excluir o prazer que faz parte do sexo. Se for para castigar uma mulher de que se diverge, não só é patológico e criminoso como é uma contradição de termos: castiga-se com o que teoricamente dá prazer. Quem dá prazer não castiga. Eis a teia emaranhada de contradições em que se afundam os Machados do couto lusitano. Confere com a sua linhagem de bárbaros.

Estes machos alfa, que atropelam a vontade de uma mulher punindo-a com sexo à força, devem ser aqueles que não sabem o que é o sexo, a não ser na sua muito egoísta conceção dos prazeres carnais que não saem dos limites do seu eu. Descontando o mal que é feito às mulheres violadas (ou com juras de violação), não haverá grande diferença entre um espécime destes e o onanista que se refugia no auto-prazer por incapacidade de se relacionar na intimidade com outros(a)s. Estes violadores por delito de ideologia nunca devem ter dado prazer a uma mulher. No seu íntimo, sentem-se frustrados por isso.

Os machos alfa não sabem o que é sexo. São misantropos sexuais – ou gente que abre as goelas, confundindo façanhas sexuais com um crime grotesco, gente que tem uma conceção pequenina e mesquinha do que é o sexo. Tocando na ferida que prezam em manter escondida, são autores de um sexo pequenino (não confundir com um pequeno sexo). São pior do que os porcos básicos. São doentes mentais, sem que possam ser declarados inimputáveis. 

Por mais que hasteiem loas apenas auto-convincentes à sua desenvoltura sexual, são uns pobres incapazes que merecem ser denunciados enquanto eunucos sexuais (metaforicamente falando). Muito falam de si, e com garbo, sem haver quem corrobore o autoelogio. Vingam-se das suas fraquezas, idealizando a pose de imperadores a quem são servidas, à revelia da sua vontade e como corretivo, as mulheres sacrificiais a que não importa apurar a vontade. 

São a casta máxima dos masculinos frustrados. No alargamento da dicotomia de David Foster Wallace a uma terceira categoria, seriam os eunucos do sexo. 

10.12.24

Boa disposição, por decreto

Massive Attack, “Paradise Circus” (Guy Boratto Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=4Nudh1YXhXc

Andam merencórias, as vidas mundanas que atravessam o fio do tempo como se trabalhassem para esquecer. Esquecem os sonhos que ficam por cumprir, para não serem reféns da angústia. Vivem por fora das suas vidas, carregando a melancolia. Uma decadência estrutural atravessa a sociedade: não são apenas os que vivem à míngua que sofrem, imersos na penumbra que é sinónimo do futuro, presas habituais da desesperança, o mal das vidas inditosas atravessa várias classes sociais.  

Quando acordam é como se soubessem que o banho que se segue é um choque térmico: começa mais uma semana, começa mais um dia, e a impressão de rotina que os aprisiona toma conta do corpo, impede-os de fingir uma anestesia fingindo este estado de alma. As vidas são um arrastar de dias mergulhados nas cores baças de um dia repetitivo que não chega a ser soalheiro, por mais que o sol quase irrompa entre o marasmo do tempo e a apatia das pessoas. 

Para compensar tamanhas asperezas, radialistas ungidos de boa disposição procuram convencer os ouvintes que não podem arrastar os seus pesados corpos pelo desfiladeiro do tempo. Exsudam boa disposição; Dizem, em abono de si mesmos, uma boa disposição contagiante. Servem talhadas de humor para as pessoas se livrarem dos rostos sisudos e esboçarem um sorriso. Um sorriso, uma conquista. Não pode existir intervalo na boa disposição; as pessoas devem forçar o braço à melancolia, derrotada pela corrente de pensamento positivo contra as nuvens negras que se abatam sobre o quotidiano. 

Os radialistas matinais deviam receber um suplemento de salário pela irradiação de boa disposição. Mestres do fingimento, ensinam a audiência a fazer de conta que “tristezas não pagam dívidas” e outros lugares-comuns dilacerantes, em pura rima com uma pobre linhagem intelectual, um manual de procedimentos que enraíza a alegria irrecusável. Tanta e tão contagiante boa-disposição ordena a pose sorumbática. Apetece “des-rir”, vestir um rosto fechado, meter uma exceção na pose habitual para ser boçal com os embaixadores da boa-disposição, contestá-los. E apetece, por um momento, ser espião das vidas não reveladas destes arautos da boa-disposição só para confirmar a desconfiança de que tudo não passa de uma farsa. Tanta boa-disposição transbordante despacha o seu antídoto como criteriosa vacina contra as farsas sistemáticas a que somos convocados em nome de um faz-de-conta que nos isola do mundo sem máscaras. Mas o mundo é-nos servido nas máscaras que não são convidadas para o palco dos fingidores que ensinam a alegria como modo de vida.

Tanta boa disposição a esmo faz perguntar se gente tão continuamente bem-disposta não é o produto de uma farsa completa. Para que todos sejam, radialistas e audiência, produto de um fingimento atroz. 

9.12.24

Corrosão (vidas, apesar)

How to Destroy Angels, “The Space in Between” (live at Coachella), in https://www.youtube.com/watch?v=IQsbiqLIJdQ

Um esticão no dia, pode ser que seja mais tarde o seu ocaso – ainda vamos a tempo do tempo magistral. Dizem que não se açambarcam os medos do alto de um precipício. As coisas hão de conter o seu oposto. Podemos ser audazes e somos apanhados na corrosão de tudo, como se um verme em forma de ferrugem avançasse, imparável, contra a inércia estabelecida. Mas, depois, sobram as vidas. Vidas que não se depõem no inverosímil estertor. Vidas que são vividas intensamente, sem que as outras vidas saibam disso. Vidas que insistem em ser dicionários da modéstia.

Vagamos a noite impronunciável. Ele há tantos vocábulos que nos obrigam a pedir ajuda ao dicionário – e tantos outros que ainda estão por descobrir. Agasalhamo-nos no frio por sabermos que as veias incandescentes nutrem a ebulição da carne. O frio devolve a sensibilidade ameada no olvido. Afinal, sentimos: sabemos, sem hipotecar o pensamento, sem doar os esteios de que somos fundamento. A noite não é imorredoira. E nós, não conspiramos contra os vultos desarrumados de gavetas empoeiradas.

A humidade da noite inflaciona a corrosão. Os elementos ficam à mostra, uma nudez inconsequente. Se não fosse pela matéria validada, o beneplácito estimado como caução legítima, seríamos a cidade que se entrega às vidas, que lhes devolve um genuíno sentido. Receamos que a corrosão esteja entranhada. A tinta escura herdada da noite sem aval estende-se na pele, disfarça-a de xisto.

Seja a corrosão: as vidas continuam pelo fio do tempo, não desanimam aos pés da corrosão. Não deixam que ela seja síndica do nosso haver. As cartas escritas pesam sobre as janelas entreabertas como se precisassem de respirar o ar puro que voluteia desde o mar. Elas são como dardos que engastam a carne exposta, uma anestesia sem modos que inaugura a estação do fingimento. Somos as vidas herdadas do passado com a atalaia da corrosão. 

Não fugimos. Vamos entardecendo no vagar próprio que se escreve como prefácio da noite. Anotamos os sedimentos da corrosão que povoam a pele urdida. Somos nós; nós, sem os nós que a decadência começa a pear. Somos esta forma sumptuosamente aformoseada que adestra a decadência. Sem elixires, sem medonhos estertores que adejam sobre o fio do horizonte. De braço dado com a vertigem do tempo que ousamos abrandar. 

6.12.24

Ministério dos sonhos

Interpol, “Lights” (Live ARTE Ghost Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=TpkefUnt46E

São tantas e transversais as avenidas por onde circulam os sonhos que ninguém pode abonar que eles não se entrecruzam. Há sonhos que são antídotos de outros sonhos. E sonhos que fermentam sonhos outros, que depois entram num estuário onde confluem diferentes titulares de sonhos – uma constelação de sonhos. 

E há sonhos apátridas, sonhos rebeldes, sonhos párias, sonhos quiméricos, sonhos labirínticos, sonhos assíduos, sonhos sem cais, sonhos à prova de sonho, sonhos intraduzíveis, sonhos militantes, sonhos sem medo de sonhos, sonhos que arrastam o mau passado para o lugar do sonho, sonhos sem matéria, sonhos com pessoas sem nome, sonhos em lugares sem paradeiro, sonhos mnemónicos, sonhos idiomas, sonhos atravessados nas diferentes texturas do tempo, sonhos imateriais, sonhos-sonhos e, quase todos, sonhos independentes da vontade de quem os sonha. 

Como se organizam os sonhos?

A resposta do coro de habituais servos do poder seria atribuir a incumbência ao governo. Haveria um ministério, o ministério dos sonhos, para organizar a matéria onírica. Tratar-se-ia da planificação dos sonhos, sem ser quinquenal. Como as pessoas dormem todas as noites, e como os peritos advertem que não há noite de sono que não seja passada pelo crivo de um sonho, a planificação dos sonhos teria uma base diária (noturna, no caso maioritário dos que dormem à noite). Seria preciso ligar às noites pretéritas, fazendo o inventário dos sonhos e codificando-os por pessoas. 

O objetivo seria a distribuição equitativa de sonhos, para que não haja concentração de pesadelos nuns poucos e para que os sonhos sejam dispersos, para as pessoas terem experiências diferentes que passam pelo crivo dos sonhos e se lembrem delas. Aos que confessarem não haver lembrança dos sonhos, o ministério dos sonhos cuidaria de ativar os mecanismos que ativassem a aura dos sonhos. Pois todos têm direito ao sonho.

O sonho do ministério dos sonhos não passa de um pesadelo – e isso é que salva os nossos sonhos. Os sonhos ainda são o maior sonho. Não obedecem a regras nem à vontade daqueles que julguem ser engenheiros de tudo (incluindo dos sonhos). Os sonhos são uma matéria baldia, à prova de qualquer manifestação de poder. Bem-haja aos sonhos e que se mantenham com esta aura.

5.12.24

O sangue oculto

The XX, “I Dare You”, in https://www.youtube.com/watch?v=qqflFMhkqHM 

Parte de mim é apeadeiro. A outra parte, o sol escondido sob os escombros do dia pretérito. Parte de mim não se parte nem sob a coação de censores impenitentes. A outra parte está armadilhada pela comiseração que continua a ser verbo assíduo. Parte de mim entrega-se de peito nu no auge da invernia. A outra parte é exilada nas águas quentes num meridiano a pedir contexto. Parte de mim fecha-se numa concha alimentada de sonhos. A outra parte está sitiada pelo desexemplo do mundo concreto. 

Parto de mim para desenhar as fronteiras num lugar que seja distante. Parto de mim sem a pretensão de ser a casa da chegada. No parto de mim, essoutro escondido num rosto impassível e no sangue imperturbável, vejo-me por fora de mim, como se participasse de um sonho em que sou espectador de mim mesmo. Uma parte de mim convoca a aprendizagem contínua. Só podemos ser aprendentes se nos deslocarmos da nossa própria circunstância e conseguirmos ser um eu no seu exterior.

Em parte, sou a procrastinação do futuro. A mão quente que se deita sobre o gelo, fautora do degelo que acalma os modos do Inverno e fecunda a promessa de Primavera. A mão quente que açucara a pele carente de blandícia, desaprovando a semelhança com a impessoalidade que sopra atrás dos ventos dominantes. Em parte, sou a máscara que se esconde do rosto fingido.

À parte, determino a latitude e a longitude dos meus domínios. Não dou crédito aos pesares que rimam com prantos repetidos. Fujo das multidões porque quero lucidez. Porque não quero que o sangue ceda perante a hibernação mandatada e temo que a exposição prolongada aos outros processe a minha adulteração. À parte, ateio uma fogueira iridescente para conservar o sangue em ebulição. 

Da minha parte, esbracejo o sangue oculto. O labirinto que anima o pensamento. A boca que semeia a fala pragmática. A prosa encantada com o poema que reinventa a manhã. O salto por cima do inclinado pudor. Da minha parte, atiro-me às cegas ao sortilégio do porvir. Para a parte que seja minha, sem o inferno por companhia, depor a inteireza de dizer o que não se esconde nas águas-furtadas do pensamento.

4.12.24

Pacto de não agressão

Hania Rani, “Tennen”, in https://www.youtube.com/watch?v=b5460Oggjnw

As tréguas substituem com proveito os sobressaltos que sejam o resultado dos pleitos afinal inúteis. Pode-se discutir se há pleitos úteis; dirão: a defesa de honra é um pleito útil; mas a subjetividade impera, o que define a lesão da honra que exige a sua defesa intransigente senão as muito subjetivas dores sentidas por cada um?

O pacto de não agressão é o melhor dote. A agressividade abre a porta a uma beligerância nunca saudável. Os que protestam a favor das suas causas legítimas vivem cercados pela angústia de se sentirem vítimas prediletas dos outros. São vítimas dos seus próprios exageros, de um destempero que os cerca com a hibernação. Vítimas de um olhar interior que os atraiçoa. Ateiam os fogos onde se consome a sua serenidade. Sublevam os sentidos, hipotecados pelo raciocínio que treslê as circunstâncias. Têm de ser vítimas de algo, ou as suas vidas perdem-se num emaranhado de significados baços. A menor das ofensas transforma-se num crime irreparável. Daí para diante, sobra o rancor sufocante que não poupa ninguém que for apanhado no caminho.

A perturbação de espírito pode tomar tamanhas proporções que os que são apanhados nesta maré tumultuosa nem percebem que estão colonizados. A inquietação passa a ser um modo de vida. Um desviver de que poucos conseguem ter lucidez para apurar o diagnóstico. Sem capacidade para entenderem a enfermidade, não precisam de armas para a combater. O passar dos dias é um colossal endividamento à conta do desviver. 

A menos que, num acesso de lucidez que contrarie os fogos ateados, os beligerantes entendam que um pacto de não agressão transforma os dias em bálsamo. As arrelias deixam de ser fraturas expostas, as palavras ditas pelos outros deixam de ser a cal viva atirada para cima de feridas intencionais, o sono deixa de ser empobrecido por insónias bárbaras, o trato com os outros já não é transido pela desconfiança sistemática. 

Através do pacto de agressão, todos reaprendem a ser o que foram antes de terem sido atirados para os tentáculos de uma beligerância fervente. Mas as pessoas continuam a preferir erguer fronteiras em vez de levantarem pontes.

3.12.24

Sindicato das crianças enganadas pelo Natal (conto pré-natalício em registo de marxismo precoce)

Michael Kiwanuka, “One and Only”, in https://www.youtube.com/watch?v=seM1jQQ2Abs

Convocatória de greve geral das crianças, para um dia destes: sem pré-aviso, sairemos de casa sob protesto para os nossos pais saberem que vamos contrariados para a escola. Uma vez chegados à escola, recusar-nos-emos a comparecer nas aulas.

Fundamentação:

Não queremos continuar a de ser enganados pelo imaginário do Natal construído pelos mais velhos. Vamos a um centro comercial, ou a uma feira de Natal, e posamos com o Pai Natal. Chegamos à escola e mostramos as fotografias uns aos outros para descobrirmos que: ou o Pai Natal consegue o milagre de estar no mesmo sítio ao mesmo tempo; ou é um intrujão, fazendo-se passar por quem não é; ou, afinal, não existe. Podiam admitir, os gestores do Natal e os nossos pais, que não há o Pai Natal, que há, talvez, milhões de Pais Natal espalhados pelo mundo, mas que são personagens simbólicas. Podiam confessar-nos que não existe uma pessoa chamada Pai Natal. 

Estamos cansados da infantilização que é um anátema, como se fizessem de conta que não somos de uma geração diferente, com acesso a telemóveis por sua vez com acesso ao mundo (existente, imaginário e o do Trump) que nos trazem a informação que os mais velhos, quando tinham a nossa idade, nem sonhavam ser possível existir. Estamos revoltados por os nossos pais e os nossos familiares chegados insistirem na mesma infantilização de que foram vítimas quando tinham a nossa idade. Queremos ser a última geração vítima desta infantilização. Juramos que não faremos dos nossos filhos e sobrinhos uma gesta infantilizada.

Não queremos continuar a pactuar com a mitologia do Natal que é uma pura falsificação. Não é preciso ser perspicaz para descobrir que as prendas de Natal não são distribuídas por um consórcio de Pais Natal locomovidos por remas, porque as renas não voam e ninguém nos revelou pormenores sobre o franchising do Pai Natal. Já não somos ingénuos para nos contarem a patranha das prendas que descem pela chaminé, porque no regime de propriedade horizontal, hoje dominante, a chaminé é por prédio e as prendas de Natal não são uma encomenda coletiva.

Como temos uma precoce, mas bem informada, consciência de classe, queremos denunciar o Natal pelos efeitos nocivos para a justiça social. Há muitas crianças que não podem sonhar com o Natal fantasioso que o capitalismo propaga para as domesticar desde a infância. Insistir na celebração fraudulenta da quadra arrasta muitas crianças para a melancolia por não terem acesso a um módico de generosidade natalícia a que as crianças favorecidas têm direito. Persistir no Natal assim encenado é perpetuar as desigualdades, castrando os sonhos que essas crianças não podem a experimentar.

Pelo exposto, faremos greve às aulas e à sopa por dois dias, em dia que nos apetecer, sem estarmos vinculados a um pré-aviso. (Como somos menores, a inimputabilidade perante a lei dispensa-nos das suas exigências.). Deixamos, à consideração de quem gere o Natal, a exigência que o Natal deixe de ser como é, para não continuarmos a ser infantilizados como somos. 

2.12.24

Se não fosse a poesia

The Cure, “A Night Like This”, in https://www.youtube.com/watch?v=KE1nu67-U2I

“Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”. Shelby

O nevoeiro que se mete no caminho da luz inaugural desenha novas formas de luz que de outro modo não seriam conhecidas. A penumbra insinua-se em feixes de luz que não foram cooptados pela cortina baça que vai colonizando o dia. Ao contrário dos lugares-comuns, que depressa amaldiçoam a manhã tingida de nevoeiro que indispõe as pessoas, o nevoeiro não é sinónimo de mau tempo. 

Um efémero exílio pelas montanhas coalesce o silêncio que acompanha o refrigério da alma. No campo de visão não há vivalma, nem estradas que possam desvendar um veículo furtivo só para interromper o exercício heurístico do dia. Não se diga aos capatazes das modas que este é um lugar a visitar. Às vezes, o egoísmo tem sentido. O silêncio extingue as armadilhas da cidade. Nem que seja efémero, este é um exílio de que não se pede escusa. 

Um pássaro tomba estrepitosamente no passeio, para sobressalto de quem passa. Acometido de síncope fulminante, caiu a pique. Ninguém pode fugir ao colostro da morte. Ela está de atalaia, envia sinais para que ninguém se esqueça dela. É o incentivo para devermos à vida o modesto pecúlio do tempo que a faz sempre breve.

Duas pessoas discutem com veemência. Não estão para chegar a vias de facto: é uma discussão acalorada, fervida nas divergências que sabem tutelar. À sua volta, as pessoas não podem deixar de ouvir a contenda. São como agentes que escrutinam o mercado de ideias que desfila à sua frente. Não podem ser indiferentes. Todos acatam um código de honra implícito: não se metem no meio da conversa, tomam notas mentais para serem os síndicos do fecundo laboratório de ideias.

Um homem a meio caminho entre a meia-idade e a terceira idade recita as pendências a que recusa dar vencimento: a política, os partidos e os escanções da política; os grandes empresários que querem liberdade mas estão sempre a estender a mão para o subsídio ou o corte de impostos; os eternos candidatos a isto e aquilo também, autoproclamados “reservas da nação” (sem perceberem que quem passou à reserva deixou de contar); os que se deitam ufanos porque conseguiram influenciar milhares de acéfalos seguidores; os artistas que se empenham na cidadania, acabam a fazer política e passam a ser contumazes às artes (com perda para as artes e ganho nenhum para o resto); os jornalistas que clamam por imparcialidade e mentem com os dentes que têm; os humoristas que entretêm os outros com a sua (dizem) contagiante boa disposição e com o humor inestético; os narcisistas incorrigíveis; os falsos modestos (o avesso dos narcisistas); os que estão convencidos que estão acima dos demais e mesmo assim não se cansam de apregoar a igualdade; os que vivem agarrados à razão, nem que tenham de recorrer à desonestidade intelectual; aquele viveiros de gente anónima que aspira a trepar uns degraus na hierarquia da popularidade, para tirarem os seus nomes do reduto da indiferença; os mitómanos profissionais; os trapezistas que dizem hoje uma coisa e amanhã o seu contrário e continuam a ser propugnáculos da coerência; os penhores da moralidade e os que tiraram a carta de cuidadores das almas desvalidas; os que só sabem das vidas alheias sem saberem tutelar a própria; os que dispõem de crédito máximo no mercado da arrogância; os eternamente desconfiados de toda a gente.

E jurou: em vez desta gente toda, mergulharia numa dose diária de poesia. 

29.11.24

O que vale o 25 de abril de Manuel Loff?

Cara de Espelho, “Político Antropófago”, in https://www.youtube.com/watch?v=U13tItb5CQU

A direita nunca gostou do 25 de Abril.” 

Manuel Loff, “O 25 de Novembro em tons de 28 de Maio”, Público, 27.11.24, p. 10.

As análises são sempre parciais, eivadas de relativismo. Duas pessoas podem ter entendimentos diferentes da mesma realidade, por serem diferentes os pressupostos de que partem e diferentes os ângulos que escolhem para analisar a realidade observável. Por exemplo: um comunista, daqueles que ainda é radical (não se modernizou depois da hecatombe da União Soviética) pode chamar-me “fascista” porque sou de direita (sossegue o leitor: sou de direita moderada). E eu posso repudiar o uso abusivo que o comunista faz da palavra “democracia”, na inesgotável retórica de quem convoca para si o papel de tutor da democracia inaugurada em 25 de abril de 1974. Ou podemos, eu e o comunista, verter diferentes interpretações sobre o 25 de novembro de 1975. Eu ficarei com as minhas dúvidas, o comunista continuará agarrado às suas inabaláveis certezas, à sua cosmovisão hipotecada pela História e com adesão insignificante na sociedade portuguesa.

Como partimos de diferentes pressupostos, olhamos com olhos diferentes. Os pontos de chegada são antagónicos. Cada um ficará amarrado às suas conclusões. Sei que as minhas dúvidas metódicas não se impõem ao comunista radical. E sei, por muito que isso me possa custar (mas dou de barato), que o comunista encosta-me aos fascistas e não abdica da sua verdade irrefutável. Incontroverso é que nem eu consigo convencer o comunista, nem o comunista me convence. Cada um ficará com o seu olhar particular. 

Vem este (longo) exórdio a propósito do artigo de opinião de Manuel Loff no Público de 27 de novembro. Loff entra a matar, categórico: é a citação que dá o mote a este texto, que abre o artigo de Loff e é repetida no início do quinto parágrafo. “A direita”, no rosário de generalizações que lhe é grato – muito embora, a páginas tantas, Loff distinga a direita conservadora, a direita neoliberal e, vá lá, o PSD, da extrema-direita –, “a direita” não gosta do 25 de abril. Se tivermos por barómetro a representação parlamentar resultante das últimas eleições, 60% dos deputados não gostam da democracia, e semelhante é a proporção do povo antidemocrático. Eis o clímax da arrogância: Loff, o historiador (ou será apenas Loff, o cidadão?) a julgar mais de metade dos eleitores por serem portadores de pergaminhos antidemocráticos. 

A contundência dos argumentos emana do dogmatismo que ocupa o pensamento de Loff. Pode Loff resgatar a história pré-25 de abril para convocar os créditos do PCP no combate à ditadura, que isso não serve para legitimar o pepel imorredoiro do partido como vigilante da democracia. É com base neste pressuposto que muitos transigem com o tudo-e-mais-alguma-coisa do PCP que, talvez (sublinho, talvez), explique a ambiguidade dos comunistas nos acontecimentos de 25 de novembro de 1975. 

As interpretações dominantes do episódio selam a narrativa de legitimação do PCP. À falta de provas sobre a ignição da revolta pelo PCP, fica para memória futura a ideia de que o PCP está entre os vencedores do 25 de novembro porque não foi ilegalizado, como queriam muitas personagens de direita radical. Da hipotética conspiração para um golpe que liquidaria a democracia (isto sou eu a ensaiar História contrafactual), os comunistas passaram a perfilar ao lado dos vencedores do 25 de novembro. Daí à ideia de que é despropositado “a direita” celebrar o 25 de novembro porque nem sequer esteve envolvida nos acontecimentos, vai um pequeno salto argumentativo. Típico de quem medra na desonestidade intelectual, de quem está habituado a patrulhar a liberdade dos outros. Falta reconhecer, a estes historiadores oficiais do regime, o simbolismo do 25 de novembro: a Liberdade ficou a salvo de aventuras totalitárias.

Agora é a vez do tipo de direita chegar a conclusões – às suas parcelares e muito relativas conclusões. Continuando o exercício de História contrafactual, que pode ser tão fantasioso como as elucubrações que Loff dá à estampa no Público num registo quinzenal, se o 25 de novembro não tivesse sido um coito totalitário interrompido; se o PCP esteve mesmo na retaguarda da sublevação abortada; o comunista que me perdoe, mas a sua linhagem, que é de alguém que tem saudades da União Soviética, leva-me a concluir que o anti-25 de novembro podia ter ditado a sovietização de Portugal.

Quase a terminar o artigo de opinião, Loff assegura – e afirma-o a sério – que para “a direita”

(...) entre as datas da contemporaneidade, a única alternativa disponível – e não exagero – era continuar a comemorar o 28 de Maio e a “Revolução Nacional” de que falava Salazar. (...) Sendo-lhes inviável fazê-lo, as direitas querem comemorar o 25 de Novembro mas como Salazar comemorava o 28 de Maio. (...) Nesta falsificação repetitiva da história, é sempre assim que as direitas veem os processos de mudança democrática. A democracia fez-se apesar delas, contra elas. Mas ainda não desistiram de vingar-se.

Depois de me sentir esmagado por esta certeza categórica, eu, que não sou militante ou simpatizante do Chega, do CDS, da IL e (vá lá) do PSD, sinto-me desorientado, órfão de referências. Confesso: nunca enverguei um cravo vermelho à lapela, mas custa-me admitir que alguém me julgue por demissão da democracia à conta desta omissão pessoal. Como amante das liberdades, celebro o 25 de abril como celebro o 25 de novembro (sem cair na risível proposta de elevar esta data a feriado nacional). 

Mas depressa recupero a lucidez. O que me separa do comunista radical é um mundo inteiro de coisas. Desconfio (contrafactualmente, outra vez) que se o 25 de novembro dos golpistas tivesse vingado, e se o comunismo não estivesse em vias de extinção, hoje não podia publicar este texto. Guardo, como imagem animadora, a certeza de que Loff pode continuar a escrever quinzenalmente onde lhe apetecer e onde tiver acolhimento. Graças à democracia que ele abjura. 

Esse é um favor inestimável que a democracia nos faz.


28.11.24

Suficiente menos

The Cure, “A Fragile Thing”, in https://www.youtube.com/watch?v=tRGYtDdgmLA

Leio os lábios: intriga-me que alguns jogadores de futebol, enquanto cumprimentam os adversários antes de o jogo começar, lhes desejem “bom jogo”. Fico intrigado, mas não devia. Com o mundo no estado em que se encontra, aqueles votos têm muito de insincero. O mundo nosso não é um lugar de lisura, muito menos quando alguém deseja ao adversário, num contexto tão competitivo como é o desporto, o contrário do efeito desejado. O desporto não guarda nada do espírito olímpico original. Perpassa a ideia que no desporto-negócio, que está a substituir o desporto-paixão e o desporto identitário, todos os meios são válidos para atingir os fins. Desejar “bom jogo” ao adversário é dito da boca para fora, uma alocução mecânica que verte um módico de fair play, só para fazer de conta.

Ou será que desejar “bom jogo” é um enfeite para enganar o adversário – como se o hipnotizasse com tão boa educação? Não será, pois o adversário estará formatado para retorquir na mesma moeda. Quando dois adversários desejam reciprocamente “bom jogo”, estão a caminho de um empate que não tem por onde se desatar. Esta franqueza, uma máscara vestida por imperativos de boa educação desportiva, traz um impasse. Um “bom jogo” ao quadrado, que sirva aos dois adversários que desejam um ao outro que bom seja o seu jogo, pende para o menor denominador comum. Como se os dois se contentassem com um suficiente menos, porque é, ao menos, um suficiente. Quando todos empatam, ninguém ganha. Mas, ao menos, ninguém perde. É um contrassenso desportivo. 

Os que conhecem o desporto contemporâneo sabem que a competitividade levada ao limite, com a usura dos que se socorrem de métodos reprováveis para chegar ao olimpo e a recorrência de ardis que falsificam o fair play, está nos antípodas do verniz de educação entoada quando se deseja um “bom jogo” ao adversário. Dir-se-á que os votos de “bom jogo” endereçados ao adversário têm de ser lidos no contexto: quando um desportista formula esses votos, eles traduzem-se no seguinte: “desejo-te bom jogo, que não te magoes,” – porque ainda há uma ética profissional entre pares que não tolera danos à integridade física – “que o teu bom jogo não seja suficiente para que o meu seja melhor do que o teu e que não impeça que a minha equipa vença a tua.”

O desporto é a imagem acabada da política, desde a doméstica à internacional: um rosário de proclamações bem-intencionadas que raramente quadram com as concretizações. Fica bem prometer boas promessas, ou dizer o que cai bem no goto da audiência. Depois, funciona má memória das pessoas: entre a panóplia de proclamações bem-intencionadas que transbordam para o espaço público e as preocupações do dia-a-dia das pessoas, as promessas alinhavadas no pretérito depressa ficam condenadas ao esquecimento. Não há prestação de contas do que foi dito no passado.

As palavras diplomáticas são ditas porque fica bem serem ditas. Mas não significam nada. São parte de uma retórica vazia. Não há amigos quando o desporto tão competitivo é o palco onde desfilam adversários que por vezes se transfiguram em inimigos. E entre inimigos, não há ética que lhes valha.

27.11.24

Congeladores do progresso

Nils Frahm, “Kaleidoscope”, in https://www.youtube.com/watch?v=6KCY1eRnzcM

Será a matéria furtiva a caução para a âncora que se lança na noite? 

Os provérbios querem que haja povo a acreditar neles. Não são nada sem o povo, que é o seu fautor. O povo seria refém de uma orfandade se não tivesse bússola num compêndio de provérbios. Está por determinar o que seria do povo se um déspota malévolo (não os havendo benévolos, e essa é uma certeza categórica) determinasse a extinção dos adágios populares. 

É como num cozinhado, os ingredientes não são por acaso e respondem à idiossincrasia de um povo. Pois foi o povo o soberano da construção da gastronomia: as pessoas têm de comer para se manterem, é preferível que o façam com proveito para o gosto. Mais tarde, uma casta de iluminados toma lugar na gastronomia e reinventa os modos. Reinterpreta o receituário. A parte substancial do povo não se diz destinatária da criatividade culinária. Estranham a combinação original de ingredientes, desconfiam, sobretudo, das doses homeopáticas em que são servidas as iguarias. O povo não nasceu para ser magro. 

Para não serem acusadas de conservadorismo, as pessoas são desafiadas a estilhaçar as convenções que as amordaçam. Mas não dão conta da mordaça que restringe a sua vontade. Muitas continuam sitiadas nos lugares exíguos onde se sentem confortáveis. Os costumes por que se regem devolvem algum senso de pertença, não os entendem como limitações. Nos confins da autoproclamada intenção de conduzir as massas, os engenheiros sociais desconfiam da lucidez do povo. É compreensível: querem é um povo dependente do pensamento dos predestinados que pensam por eles; querem um povo obediente, que não ouse sair dos seus limites. Se forem nómadas no pensamento, aprendem a usufruir da autonomia, que torna os engenheiros sociais dispensáveis.

A matéria é subjetiva. Por mais que os rostos dos costumes sedentários argumentem em sentido contrário. Se não houvesse carris que enfeudam as pessoas, se todo o chão que pisam fosse puro baldio, não haveria dependências que ostracizam o pensamento. Não haveria quem, falsamente benévolo, orquestrasse uma castração sem ser notada, sob pretexto de poupar as massas ao incómodo do pensamento.

26.11.24

Se correres mais depressa, eu corro mais depressa

Deftones, “Rocket Skates”, in https://www.youtube.com/watch?v=woR6ohiFeYE

“God shave the Queen”, João César Monteiro, in A Comédia de Deus

Ora: enumera os garfos perdidos no arrozal, enquanto os operários labutam de cabeça baixa – na injusta imagem que os realistas com certa linhagem ideológica denunciam, só para confirmar a teoria da luta de classes. Enumera todas as opressões que tornam profundamente injusto o mundo, como se deus (se existisse) conspirasse com esta linhagem ideológica para provar que os pressupostos de que partem quadram com o quadro de profundas injustiças que emoldura o mundo.

Depois: conta os automóveis vermelhos que se cruzarem contigo na autoestrada até a Lisboa. Saberás, então, porque os comunistas andam em baixa nas preferências do eleitorado, o que acaba por conspirar contra deus, na sua santa aliança com esta linhagem ideológica, pois dezanove em cada vinte pessoas que vão às urnas não acreditam no cenário apocalítico que serve a santa aliança.

A seguir: desvia o olhar para aspetos mais mundanos (por mais que os contraries, eles fazem parte do mundo em que habitas, ou não se chamassem mundanos). Observa o chinês que come sem modos o pequeno-almoço e recorre aos galões multiculturalistas para dares o devido desconto: comer com a boca aberta, em ruidosos movimentos dos maxilares que soam a poluição sonora (e visual; e a um quadro absolutamente inestético) fará parte da cultura do chinês. Não o deves abjurar. Desvia outra vez o olhar: a senhora sexagenária que estava na mesa do lado já terminou o café e “fazia horas” (como se costuma dizer, na tirania das expressões idiomáticas) para começar a lida da casa onde trabalha. Levantou-se e foi comprar um maço de tabaco e três raspadinhas, que avidamente raspou com uma unha pré-encardida, a que se seguiu a compra de mais três raspadinhas. A atenção divina anda afastada da senhora. E é indulgente com o chinês, liberto de uma convenção social de que está dispensado.

Mais tarde: observas uma artista circense que faz acrobacias com uns pinos enquanto o semáforo está vermelho, para ganhar o pecúlio do dia ao colo da generosidade das pessoas que esperam pelo semáforo verde. Quase ninguém contribui. A generosidade não está em alta na bolsa de valores dos valores. As pessoas querem que a luz verde substitua a vermelha, o mais depressa possível.

Antes que seja tarde (não percebes porque dizes, como se fosse uma auto advertência, “antes que seja tarde”): já é noite, num entardecer prematuro, e um homem de meia-idade corre pela avenida fora. Os carros deslocam-se mais depressa, apesar das filas de trânsito. Nem assim o homem desiste e continua a correr, impassível, isolado do resto do mundo, no mergulho sistemático nos auriculares. Não é preciso muito para sermos ilhas no meio da multidão. Mas não contem este segredo da misantropia militante, que os adeptos da condição gregária podem ficar indispostos.

Rescaldo do dia: corremos todos, mesmo os que não sabem, uns atrás dos outros, uns contra os outros, uns com os outros. No auge da diferença entre todos nós, as velocidades são desiguais. 

Se calhar, Marx estava certo e deus inspirou-se nele.

25.11.24

Rossio

The Cure, “Endsong”, in https://www.youtube.com/watch?v=SOXsHJOhO7o

Caminhava no sentido do poente, para fazer a vontade ao dia. O crepúsculo descia sobre o céu tardio. A cidade começava a acalmar do bulício esquizofrénico. Parecia que o dia tinha esgotado os adjetivos. Um convite ao torpor delimitava o corpo, que começava a extinguir os vestígios de alma. Agora, estava quase a ser apenas um autómato, como se, diluída a vontade, sobrasse apenas o acaso que ditaria o tempo consecutivo.

Anoitecera quando um sobressalto povoou as imediações. Um troar belicoso, seco e assustador. Não era um sismo. Algo explodira. As pessoas começaram a correr de um lado para o outro. Umas, aturdidas, fugiam do lugar da explosão. Outras, acesas pela curiosidade, acorriam ao local, seguindo o rasto do estampido. As primeiras corriam, desamparadas e assustadas, algumas ensanguentadas pelo aleatório atear dos estilhaços. As segundas não conseguiam controlar o instinto de quem procura sofregamente as desgraças para delas ser testemunha.

Tinha havido uma explosão numa loja. Os vidros estavam todos estilhaçados. As paredes da loja ruíram. O que era a loja de meias era agora uma cratera. A polícia afastava os mirones e os bombeiros começavam a fazer o rescaldo, depois de extinguirem um incêndio que deflagrara. As ambulâncias chegaram mais tarde. Não havia vestígios de danos humanos, para além das pessoas que passaram na rua contígua a fugir do pânico, brevemente ensanguentadas pelos fragmentos projetados pela explosão. Os hospitais confirmaram que eram feridos ligeiros, nada que não fosse cuidado com meia dúzia de pontos, uns pensos e umas pinceladas de Betadine.

Só depois é que chegaram os serviços secretos. As gabardines escuras ostentadas por indivíduos circunspetos denunciavam a linhagem. Os modos rudes rimavam com a sisudez e as palavras telegráficas confirmavam o estatuto. Era preciso saber a origem da explosão. De acordo com os primeiros indícios, tinha sido uma bomba. Quem teria sido o autor da bomba e que protesto lhe era intrínseco?

Os mirones foram retirados da rua e das ruas limítrofes depois de os serviços secretos ordenarem à polícia para estabelecer um cordão de segurança de dois quarteirões. O tempo acalmou as memórias do episódio, tal como acontece quando o corpo começa a desligar assim que é invadido pelo crepúsculo que pressente a extinção do dia. 

Meses depois, a revelação deu à estampa: a bomba foi colocada por indivíduos já identificados para os devidos efeitos e que estavam em parte incerta. Nesse mesmo dia, depois de revelada a identificação dos autores da bomba, a perplexidade não demorou a ser atendida. Um par de horas depois, um movimento desconhecido reivindicou o atentado e justificou-o: era um protesto contra o 25 de novembro, por, esse sim, ser um atentado contra a democracia que só pode rimar com os direitos do povo.

O Rossio demorou quase um ano até a voltar a ser o que era. As cicatrizes do atentado, essas, já vinham de trás. Sempre houve quem quisesse que a liberdade tivesse ficado pela metade. Já depois da História, conseguiram refazê-la sem efeitos retroativos. Sem saberem, ou talvez apenas sem perceberem, reforçaram a razão à História.