Black Keys (feat. Alice Cooper), “Stay in Your Grave”, in https://www.youtube.com/watch?v=M513zr-J5Cg
Às vezes, apetecia ir atrás do vento. Nem que parecesse tonto. Como se fosse errante e tivesse demitido qualquer possibilidade de planos – o vento seria o GPS efémero, o doutrinador de um destino ao acaso.
Outras vezes, dava-me para não especular. Talvez dissessem que levitar o corpo no meio do aluvião de fantasias não é um delito, que quase todos os poetas vivem pelo menos dez andares acima do solo, mais perto da lua. Talvez dissessem que não especular é um punhal assestado na criatividade e que, assim como assim, o mundo (aquele a que chamam a realidade) é tão execrável que contrabando não será se vivermos pelo menos meia dúzia de andares acima do rés-do-chão.
Por isso, cumpria os desprocedimentos e dedicava-me a delirar. Por exemplo: ontem um cão terá sido avistado a ostentar um colar de pérolas. Muito embora o saber popular advirta que não é boa política entregar pérolas a porcos, o prontuário é omisso quanto à possibilidade de um canídeo envergar um colar de pérolas. No caso do porco, é compreensível a precaução popular: dos suínos se diz que deglutem tudo o que lhes aparecer no caminho e as pérolas não são como as trufas que eles fuçam com diligência (muito embora as trufas estejam ao preço das melhores pérolas de viveiro).
Ou, por exemplo, o rapaz pós-cueiros que já sabia de cor os nomes dos reis e dos presidentes da república mesmo antes de saber ler. Os progenitores ostentavam a criança com orgulho, como se a proeza lhes fosse creditada. A meio da exibição, apareceu um desmancha-prazeres. Questionou a criança sobre uma matéria banal (o número de habitantes do país), seguindo-se uma pergunta alternativa para o caso de falhar a anterior (o que diz a tabuada à multiplicação de seis por oito). A criança disse nada e o desmancha-prazeres atirou-se, com indisfarçável cinismo, ao diletantismo dos pais.
Na assistência, um castiço tentava levar à prática o desafio de comer um gelado com a testa. Teimoso, e incapaz de reconhecer que só os calvos podem ensaiar a demanda, apresentou-se (nome e ocupação: guarda-rios nas horas vagas) sem conseguir esconder o cabelo besuntado pelo gelado. Aos costumes disse nada, enquanto o gelado de baunilha pingava do cabelo, dando a entender que não estava por dentro da pendência entre os pais do falso prodígio e o desmancha-prazeres que acabara de desmascarar a insolência dos progenitores do rapaz – já ia a altercação a caminho de uma medição de força física entre os dois varões, pois então. Limitou-se a proclamar, com a dicção de um radialista, as sílabas devidamente entoadas para nenhuma ficar órfã, que amanhã era dia de estreias no cinema e que estava ansioso por saber os filmes a estrear.
Afinal, o Inverno só começava em janeiro.
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