Foges pela silhueta do rio, enquanto observas o riso extático que acompanha a decadência à tua volta. A decadência é o lugar impróprio para uma pertença, murmuras. Não trazes o arnês – nunca trazes o arnês, essa audácia já trouxe dissabores no passado, mas não aprendes. Deixas a margem do rio e começas a subir. O chão pedregoso acentua a estrénua subida até à cumeada onde julgas aferir o exílio necessário. Dizes: não é do mundo que fujo, que há mundos plurais e não sei ao certo a qual deles pertenço. Sobrepõem-se algumas interrogações: temos – tenho – de definir uma pertença? Não comprometemos o nosso ser se lhe anteceder uma pertença como axioma? A pertença não é o sintoma máximo da decadência?
Atravessas um povoado antigo, desabitado. O lugar fantasma transformou-se num museu de ruínas. Há um certo sortilégio no silêncio quase absoluto. Se acreditasses em espíritos que vagueiam entre as pedras das casas tomadas pela corrosão do abandono, dirias que por ali passeiam vultos dos moradores do povoado. Não como fantasmas; o otimismo efémero, talvez circunstancialmente oportunista, segreda que os vultos apenas querem ser cicerones, não tencionam amedrontar os visitantes. Quantas vidas foram vividas e depois extintas, de quantas são testemunhas as paredes em escombros? Não é neste lugar medonho que queres fixar o exílio sabático.
Agora a subida é ainda mais inclinada. Já consegues ver, entre os traços de neblina matinal que perduram teimosamente, a sucessão de povoações que se espalham desordenadamente pela encosta e ao longo da planície, como serpenteiam ao longo do caudal do rio (estes aglomerados também são oportunistas). À medida que continuas a subir, estás mais próximo do céu e os vestígios da paisagem distante tornam-se imprecisos. Por um instante, estás arrependido de não ter trazido o arnês.
Os primeiros sinais de neve aparecem, primeiro nos lugares que não se expõem ao sol, mais acima como mantas extensas que ocupam pedaços de chão. Nos lugares não abrigados do sol, a água escorre da neve acamada em gotas generosas. Já o suficiente para alimentar pequenos cursos de água que correm ao longo da berma improvisada. Aqui e ali, esses cursos de água transbordam da camisa-de-forças em que se transforma a berma, atravessam o caminho de terra e cavam sulcos desiguais. É o degelo que redesenha a paisagem, afoitando-se na terra dura e compacta do caminho para rasgar os sulcos, ora superficiais, ora mais fundos, que transfiguram o caminho por onde segues num caminho cheio de irregularidades.
Se não fosse o degelo, a tua vida (também) não tinha sido como foi.
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