20.12.24

A partir de uma folha em branco

Wet Leg, “Ur Mum” (live at Reading Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=HJSIzxW04fE

Nascituras, as palavras que se deitam na folha em branco; ou a virginal feição da folha que é desarmada quando a tinta negra das palavras percutidas começa a disfarçar a alvura. A folha em branco nunca sabe como são as palavras que nela procuram morada. Fica à mercê de uma vontade singular, de um estado de alma, de um voto de protesto, de um pedido, de uma história, de uma descrição, da representação de uma imagem decantada pelo olhar, do mundo que se revela a partir de uma viagem, de um poema, das palavras ora assintomáticas ora significativas, das palavras como sargaço apanhado ao acaso.

A partir de uma folha em branco, e enquanto olho para ela, sinto a mesma linhagem inaugural da folha. As palavras escritas têm um passado, não colidem com as palavras nascituras. Elas acompanham as virtudes e os deméritos, as angústias e as expressões de alegria, os sobressaltos e a maresia que pressente a acalmia, a noite que se recolhe nas fronteiras do estuário ou o dia que, como a folha em branco, encontra na madrugada a sua inauguração. A partir da folha em branco tudo é possível enquanto as palavras não se fazem ao caminho e, debruadas a tinta negra, começam a romper os poros da folha em branco. As palavras recebem o incentivo inaugural da página por estrear. São, como a página em branco, inaugurais.

Depois, o estatuto muda. A folha, dir-se-ia, contaminada pelas palavras que depõem o seu estatuto virginal, que por vezes não são contaminação; são o bálsamo que enriquecem a folha. Ela serve de cais para as letras que sobem pelo braço até ordenarem a coreografia da mão que as verte em forma de palavras. Convertendo fragmentos de pensamento em texto que o modera. 

Às vezes, não é preciso uma folha em branco: um pedaço de papel arrancado a uma toalha de restaurante, um recanto de um jornal, o verso de um bilhete de comboio, o avesso de um documento fotocopiado chegam para que, puídos, sejam remoçados através das palavras que lhes são apostas. Mas é na folha em branco que se opera o sortilégio da escrita. Que se resgata a folha de um vazio sepulcral: a folha em branco convida à articulação de palavras que servem um propósito e são as palavras que emprestam sentido à folha em branco, depois de deixar de o ser.

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