17.12.24

As portas fechadas

Queens of the Stone Age, “Goodbye Yellow Brick Road”, in https://www.youtube.com/watch?v=sEnYOAD6ZAA

Removia os pesares distantes que patrulhavam a porta. Não eram essas as bênçãos de que precisava. Afugentamos a angústia no perímetro dos outros, esquecendo que a filantropia começa em nós. As feridas não se querem abertas. Devemos o cuidado das cicatrizes enquanto é tempo. Enquanto há tempo.

Às vezes parece que a memória conspira, intercedendo a favor de memórias avivadas que deviam continuar suspensas. O presente é açambarcado pelo mergulho no passado; essa é uma hipoteca todavia temporária. Mas todo o tempo passado no resgate dessas memórias é tempo roubado. Tempo presente que fica à porta, desperdiçado no galanteio de reminiscências que se autonomizam da vontade. Se fosse apenas pela lucidez, a vontade conseguia resistir ao apelo insondável que reabilita memórias que só deviam pertencer ao olvido.

Reivindiquei a teoria das portas fechadas. Se as portas se entreabrem quando franqueiam a existência de algo que reabilita a existência, ou quando supõem um fôlego que anima a vida, elas devem ser fechadas se impedirem a entrada de elementos conspirativos que desassosseguem as almas. As portas devem ser seletivamente fechadas. Como devem ser metodicamente abertas. Consoante as circunstâncias e o juízo que delas seja feito.

A pendência fica subordinada à lucidez; melhor: aos critérios usados para a lucidez não ser um disfarce, tornando-se lucidez legítima, com mecanismos de auto-verificação, para não ser atraiçoada por uma invisível adulteração. O pior é confiarmos à lucidez aquilo que ela não é capaz de garantir por não ser lucidez legítima. Devemos ser evitar a simples subcontratação da vontade na lucidez, para não sermos reféns de uma lucidez fingida que desacautela um juízo acertado.

Mas não estamos a salvo da arbitrariedade. Da lucidez ao acaso, ora matéria-prima que nos ajuda a impedir a emergência das memórias desaconselhadas, ora uma conspiração industriada por vultos que cercam a memória e a sublevam na hipoteca do tempo presente. A lucidez atraiçoa-nos quando deixa vir à superfície as memórias que a lucidez autenticamente lúcida saberia reprimir. Ou a lucidez, tal com o nós, é incapaz de se dotar da perfeição necessária para fazer a triagem, e também tem direito às suas distrações.

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