19.12.24

Do avesso

In Tua Nua, “Take My Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=eKa3vS09jzc

Lido do avesso: as costuras ficam dentro do labirinto, não se compõem enquanto for noturno o palco a que sobem. Avezam-se as coisas outras no penhor que se despenha no desfiladeiro. Não é o precipício que intimida. É a revelação de um avesso. O avesso costuma ser avesso à notoriedade. E nós não conhecemos o avesso.

Lido com o avesso: como uma gramática reinventada que espera pelo seu tempo, antes que se desfigure no novo sentido das palavras. Podem conter entrelinhas, sentidos empossados, depois de relidas as palavras por dentro do que eram sentidos ocultos. A tradição dos sentidos restaurados só é possível depois de lidas as palavras do avesso. Esta é a lida projetada.

Não são perenes, os estados de alma. Oxalá a matriz do pensamento não fosse rígida e não nos envergonhasse a humildade de reconhecer inflexões e retrocessos, reinterpretações e indecisões. Somos um viveiro de diferenças. Diferimos uns dos outros. E na linha descontínua do tempo diferimos em diferentes momentos, como se o tempo cobrisse diferentes versões do eu. A capacidade para sermos procuradores de um avesso interior é um dom que convoca a lucidez exigente. Convoca alguma audácia.

Na passerelle entre os sentidos ambíguos, descosemos as palavras como se estivéssemos a separá-las em gomos. Vamos ao avesso da matéria formulada, atiramos as palavras contra as convenções, aventuramo-nos, se preciso for, nas ambiguidades subliminares, porque queremos devastar o seu sentido orgânico. Ao vestirmos um avesso às palavras, tornamo-las inorgânicas. Processamos a sua riqueza escondida atrás da cortina baça. 

É lido do avesso para ser dito do avesso. Um compasso de espera no uso espartano do tempo, enquanto se avivam as hipóteses de reinvenção das palavras e dos estados de alma. Não somos mecenas da adulteração nem espectadores passivos da decadência. Sondamos as possibilidades. Abrimos janelas que estavam fechadas há tempo sem memória. Abrimos outras que descobrimos ao caminhar no fino fio sobre o precipício, tomados por uma anestesia que só caduca quando os pés deixarem de tremer. 

À partida, desafiamos os sentidos estabelecidos, o entendimento dos estados de alma, os códigos zelosamente obedecidos. À chegada, não sabemos onde estamos. Esse é o sortilégio dos avessos.

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