Cocteau Twins, “Cherry-coloured Funk”, in https://www.youtube.com/watch?v=GUQ8qexN3bU
O tempo é uma ditadura. Rígida e austera, não oferece segundas hipóteses. Não somos como os gatos, que beneficiam de sete vidas. À medida que o corpo se move no fio do tempo, amanhece uma amnésia do passado. O esquecimento é um tributo à imobilidade dos corpos, como se não perdessem capacidades, imunes à decadência.
Corríamos o dia de lés-a-lés – metêramos na cabeça que aquele era um dia de direta, a cama dispensou os serviços mínimos do sono. E dizíamos: não queremos a cerimónia ateada pelas indulgências que o remorso apura. Não queremos o arrependimento. Fazemos de tudo por o dispensar. Ele há muita gente que já morreu e ainda não deu conta. Morreu e ainda não fizeram as exéquias. Nós somos tutelados pelo amor, não desistimos da vida porque desistiríamos do amor. O amor é a maior prova de vida.
Cedemos ao amante uma parte que o preenche. Buscamos no amante um rumorejo que se completa de poesia, invadindo o corpo por dentro, tingindo o sangue com o sangue quimérico do amante. Não queremos deixar de ser os amantes-mecenas que, escondidos no seu reduto, guardam segredos sortílegos. Ao contrário dos vivos-mortos, os amantes prosseguem a sua vida radiosa. Embebem-se de vida, torcem o braço à apatia convocada pela iteração do tempo, celebram o festim na coregrafia onde os corpos são combustão, na cumplicidade das almas, na troca espontânea de olhares, no idioma privativo que dispensa palavras.
Os amantes exorcizam o futuro que anoitece nas margens do enigma. Não fazem juras, não querem a paga em juros que depois não podem cumprir. Combinam as mãos entrelaçadas com o riso abundante de quem descobre todos os dias um quinhão do mundo por descobrir. São reféns da vida: não descuidam a morte, tão extasiante é a fogueira em que se move a vida.
A extinção pode conspirar contra as vidas merecedoras, mas os amantes sabem, enquanto procuradores da sobrevivência, que haverá um amanhã a romper com o acervo dos dias que compõem a vida. Não capitulam, hesitam quando têm de hesitar, mas não se abandonam enquanto amantes num altar que trespassa a existência. E dizem: oxalá o tempo fosse devolvido à procedência para fazermos tudo igual; para voltarmos a ser os amantes que vestem a tocha que tece os gramas de luz de que se faz o sol inteiro.
Sem comentários:
Enviar um comentário