6.12.24

Ministério dos sonhos

Interpol, “Lights” (Live ARTE Ghost Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=TpkefUnt46E

São tantas e transversais as avenidas por onde circulam os sonhos que ninguém pode abonar que eles não se entrecruzam. Há sonhos que são antídotos de outros sonhos. E sonhos que fermentam sonhos outros, que depois entram num estuário onde confluem diferentes titulares de sonhos – uma constelação de sonhos. 

E há sonhos apátridas, sonhos rebeldes, sonhos párias, sonhos quiméricos, sonhos labirínticos, sonhos assíduos, sonhos sem cais, sonhos à prova de sonho, sonhos intraduzíveis, sonhos militantes, sonhos sem medo de sonhos, sonhos que arrastam o mau passado para o lugar do sonho, sonhos sem matéria, sonhos com pessoas sem nome, sonhos em lugares sem paradeiro, sonhos mnemónicos, sonhos idiomas, sonhos atravessados nas diferentes texturas do tempo, sonhos imateriais, sonhos-sonhos e, quase todos, sonhos independentes da vontade de quem os sonha. 

Como se organizam os sonhos?

A resposta do coro de habituais servos do poder seria atribuir a incumbência ao governo. Haveria um ministério, o ministério dos sonhos, para organizar a matéria onírica. Tratar-se-ia da planificação dos sonhos, sem ser quinquenal. Como as pessoas dormem todas as noites, e como os peritos advertem que não há noite de sono que não seja passada pelo crivo de um sonho, a planificação dos sonhos teria uma base diária (noturna, no caso maioritário dos que dormem à noite). Seria preciso ligar às noites pretéritas, fazendo o inventário dos sonhos e codificando-os por pessoas. 

O objetivo seria a distribuição equitativa de sonhos, para que não haja concentração de pesadelos nuns poucos e para que os sonhos sejam dispersos, para as pessoas terem experiências diferentes que passam pelo crivo dos sonhos e se lembrem delas. Aos que confessarem não haver lembrança dos sonhos, o ministério dos sonhos cuidaria de ativar os mecanismos que ativassem a aura dos sonhos. Pois todos têm direito ao sonho.

O sonho do ministério dos sonhos não passa de um pesadelo – e isso é que salva os nossos sonhos. Os sonhos ainda são o maior sonho. Não obedecem a regras nem à vontade daqueles que julguem ser engenheiros de tudo (incluindo dos sonhos). Os sonhos são uma matéria baldia, à prova de qualquer manifestação de poder. Bem-haja aos sonhos e que se mantenham com esta aura.

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