10.12.24

Boa disposição, por decreto

Massive Attack, “Paradise Circus” (Guy Boratto Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=4Nudh1YXhXc

Andam merencórias, as vidas mundanas que atravessam o fio do tempo como se trabalhassem para esquecer. Esquecem os sonhos que ficam por cumprir, para não serem reféns da angústia. Vivem por fora das suas vidas, carregando a melancolia. Uma decadência estrutural atravessa a sociedade: não são apenas os que vivem à míngua que sofrem, imersos na penumbra que é sinónimo do futuro, presas habituais da desesperança, o mal das vidas inditosas atravessa várias classes sociais.  

Quando acordam é como se soubessem que o banho que se segue é um choque térmico: começa mais uma semana, começa mais um dia, e a impressão de rotina que os aprisiona toma conta do corpo, impede-os de fingir uma anestesia fingindo este estado de alma. As vidas são um arrastar de dias mergulhados nas cores baças de um dia repetitivo que não chega a ser soalheiro, por mais que o sol quase irrompa entre o marasmo do tempo e a apatia das pessoas. 

Para compensar tamanhas asperezas, radialistas ungidos de boa disposição procuram convencer os ouvintes que não podem arrastar os seus pesados corpos pelo desfiladeiro do tempo. Exsudam boa disposição; Dizem, em abono de si mesmos, uma boa disposição contagiante. Servem talhadas de humor para as pessoas se livrarem dos rostos sisudos e esboçarem um sorriso. Um sorriso, uma conquista. Não pode existir intervalo na boa disposição; as pessoas devem forçar o braço à melancolia, derrotada pela corrente de pensamento positivo contra as nuvens negras que se abatam sobre o quotidiano. 

Os radialistas matinais deviam receber um suplemento de salário pela irradiação de boa disposição. Mestres do fingimento, ensinam a audiência a fazer de conta que “tristezas não pagam dívidas” e outros lugares-comuns dilacerantes, em pura rima com uma pobre linhagem intelectual, um manual de procedimentos que enraíza a alegria irrecusável. Tanta e tão contagiante boa-disposição ordena a pose sorumbática. Apetece “des-rir”, vestir um rosto fechado, meter uma exceção na pose habitual para ser boçal com os embaixadores da boa-disposição, contestá-los. E apetece, por um momento, ser espião das vidas não reveladas destes arautos da boa-disposição só para confirmar a desconfiança de que tudo não passa de uma farsa. Tanta boa-disposição transbordante despacha o seu antídoto como criteriosa vacina contra as farsas sistemáticas a que somos convocados em nome de um faz-de-conta que nos isola do mundo sem máscaras. Mas o mundo é-nos servido nas máscaras que não são convidadas para o palco dos fingidores que ensinam a alegria como modo de vida.

Tanta boa disposição a esmo faz perguntar se gente tão continuamente bem-disposta não é o produto de uma farsa completa. Para que todos sejam, radialistas e audiência, produto de um fingimento atroz. 

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