The Cure, “A Night Like This”, in https://www.youtube.com/watch?v=KE1nu67-U2I
“Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”. Shelby
O nevoeiro que se mete no caminho da luz inaugural desenha novas formas de luz que de outro modo não seriam conhecidas. A penumbra insinua-se em feixes de luz que não foram cooptados pela cortina baça que vai colonizando o dia. Ao contrário dos lugares-comuns, que depressa amaldiçoam a manhã tingida de nevoeiro que indispõe as pessoas, o nevoeiro não é sinónimo de mau tempo.
Um efémero exílio pelas montanhas coalesce o silêncio que acompanha o refrigério da alma. No campo de visão não há vivalma, nem estradas que possam desvendar um veículo furtivo só para interromper o exercício heurístico do dia. Não se diga aos capatazes das modas que este é um lugar a visitar. Às vezes, o egoísmo tem sentido. O silêncio extingue as armadilhas da cidade. Nem que seja efémero, este é um exílio de que não se pede escusa.
Um pássaro tomba estrepitosamente no passeio, para sobressalto de quem passa. Acometido de síncope fulminante, caiu a pique. Ninguém pode fugir ao colostro da morte. Ela está de atalaia, envia sinais para que ninguém se esqueça dela. É o incentivo para devermos à vida o modesto pecúlio do tempo que a faz sempre breve.
Duas pessoas discutem com veemência. Não estão para chegar a vias de facto: é uma discussão acalorada, fervida nas divergências que sabem tutelar. À sua volta, as pessoas não podem deixar de ouvir a contenda. São como agentes que escrutinam o mercado de ideias que desfila à sua frente. Não podem ser indiferentes. Todos acatam um código de honra implícito: não se metem no meio da conversa, tomam notas mentais para serem os síndicos do fecundo laboratório de ideias.
Um homem a meio caminho entre a meia-idade e a terceira idade recita as pendências a que recusa dar vencimento: a política, os partidos e os escanções da política; os grandes empresários que querem liberdade mas estão sempre a estender a mão para o subsídio ou o corte de impostos; os eternos candidatos a isto e aquilo também, autoproclamados “reservas da nação” (sem perceberem que quem passou à reserva deixou de contar); os que se deitam ufanos porque conseguiram influenciar milhares de acéfalos seguidores; os artistas que se empenham na cidadania, acabam a fazer política e passam a ser contumazes às artes (com perda para as artes e ganho nenhum para o resto); os jornalistas que clamam por imparcialidade e mentem com os dentes que têm; os humoristas que entretêm os outros com a sua (dizem) contagiante boa disposição e com o humor inestético; os narcisistas incorrigíveis; os falsos modestos (o avesso dos narcisistas); os que estão convencidos que estão acima dos demais e mesmo assim não se cansam de apregoar a igualdade; os que vivem agarrados à razão, nem que tenham de recorrer à desonestidade intelectual; aquele viveiros de gente anónima que aspira a trepar uns degraus na hierarquia da popularidade, para tirarem os seus nomes do reduto da indiferença; os mitómanos profissionais; os trapezistas que dizem hoje uma coisa e amanhã o seu contrário e continuam a ser propugnáculos da coerência; os penhores da moralidade e os que tiraram a carta de cuidadores das almas desvalidas; os que só sabem das vidas alheias sem saberem tutelar a própria; os que dispõem de crédito máximo no mercado da arrogância; os eternamente desconfiados de toda a gente.
E jurou: em vez desta gente toda, mergulharia numa dose diária de poesia.
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