31.12.24

A nossa responsabilidade perante os imigrantes: contra a visão utilitarista da imigração

The Murder Capital, “More Is Less”, in https://www.youtube.com/watch?v=2SmnKIjCnlk

O deputado Fabian Figueiredo explicava, com a paciência de um pedagogo, por que não podemos fechar as portas aos imigrantes. O deputado falava numa manifestação que protestava contra a rusga musculada da polícia no Martim Moniz que, estigmatizando os imigrantes, habilitou comparações com episódios de má memória histórica. Fabian Figueiredo fez o trabalho de casa (como compete aos deputados da nação) e mostrou como os imigrantes são indispensáveis para a nação. Justificou com dados estatísticos que provam como os imigrantes contribuem para a riqueza nacional, para a segurança social (a sua sustentabilidade futura), para o equilíbrio do tecido económico (porque ocupam empregos que são os nativos deixam desertos) e como não são um ónus para o SNS. 

Fabian Figueiredo tem razão. Mas a razão de Fabian Figueiredo vai muito além da argumentação que expôs com a paciência que é exigível para contrariar a boçalidade da extrema-direita (e da direita que vai a seu reboque, perdendo o paradeiro da moderação) que investe na correlação entre imigrantes e criminalidade para exigir o controlo apertado da entrada de imigrantes. O deputado Fabian Figueiredo ficou, paradoxalmente, preso a argumentos de ordem material. Paradoxalmente, porque não seria de esperar de um deputado bloquista, atenta a sua linhagem ideológica, uma tão clara identificação entre os benefícios da imigração e as vantagens sobretudo socioeconómicas. 

Defender a imigração em Portugal não deve estar dependente desta linha argumentativa. Deve abraçar uma visão holística que transcenda os aspetos materiais invocados, e bem, pelo deputado Fabian Figueiredo. A História de Portugal serve de fundamento para maximizar o entendimento da imigração no Portugal do primeiro quartel do século XXI. Se fomos conquistadores e dominámos povos conquistados, não devemos ser hostis aos que fogem dos seus países, por necessidade ou por imperativos de segurança, e escolhem Portugal para continuar as suas vidas com um módico de decência. Este padrão dúplice é uma ofensa à História. Com a agravante de que os dois movimentos (a expansão colonial de antanho e a imigração coeva) não são comparáveis, e não apenas por serem muito diferentes as épocas em que se materializaram, mas, sobretudo, porque os que entram em Portugal no dealbar do segundo quartel do século XXI não usam a coerção para nos subjugar nem nos são hostis. 

Uma visão holística da imigração não pode olhar para o fenómeno apenas pelos benefícios socioeconómicos. Essa posição deixa vir à superfície uma visão utilitária da imigração. A mensagem é clara: abrimos as portas aos imigrantes porque o futuro de Portugal depende deles, já que não somos sensíveis à regressão do inverno demográfico e não desatamos a procriar como coelhos. Basear as vantagens da imigração nesta linha argumentativa, e ter uma visão liberal sobre a entrada de estrangeiros, é um oportunismo indecente. É indecente, por um lado, porque instrumentaliza os imigrantes: abrimos as portas porque precisamos deles. E daqui decorre a segunda camada de indecência, que atropela as responsabilidades históricas de Portugal: das entrelinhas percebe-se que se dominasse esta abordagem utilitarista, não seríamos generosos com os imigrantes. Eis o lema: imigrantes, sejam bem-vindos porque precisamos de vós. Caso contrário, não vos queríamos por cá. Esta é a forma errada de tratar a imigração.

A responsabilidade histórica projeta-se do passado para o presente. Portugal tem muita responsabilidade histórica pelo peso que assumiu na História da colonização. Não entro no debate sobre a responsabilidade criminal dos descobridores portugueses. É uma matéria sensível, e terreno propício ao contributo de historiadores. E é um tema arregimentado por visões heterodoxas que ambicionam um revisionismo histórico para condenar Portugal no presente por atrocidades humanas e materiais cometidas no passado, semeando ressentimentos. Invoco a responsabilidade histórica como exigência especial do país quando se pensa no tratamento dispensado aos imigrantes que nos procuram. É por termos sido protagonistas das descobertas e da colonização que sobre nós impende uma responsabilidade aumentada. Trata-se de uma exigência que se situa ao nível do direito humanitário que, em tese, se desliga de contextualizações como a acima mencionada. É um direito, e um dever, básicos. É um dever que se abate sobre os países que podem acolher imigrantes e, desse modo, contribuir para que essas pessoas possam ter vidas condignas. Deve ser a prioridade dos Estados de acolhimento dos imigrantes. As vantagens socioeconómicas são um ganho colateral, não a prioridade que norteia a política de imigração.

Devia ser dispensável fornecer argumentos de outra ordem – cosmopolitas – para defender a imigração, onde quer que seja. O medo do outro é a prova máxima de ignorância. A desconfiança em que medra diz muito dos que desconfiam – aprendi que quem muito desconfia não é de confiar. O muito que temos a aprender com o outro e como o outro pode assimilar traços da sociedade que o acolhe devia ser o pressuposto da imigração. Porque podemos conviver respeitando as diferenças e aprendendo com elas. Porque uma idiossincrasia não é violentada quando o tecido social se torna heterogéneo, podendo dessa heterogeneidade resultar a reinvenção da idiossincrasia (desde que seja consentida e emirja das relações sociais). E podíamos deixar os soezes, que ainda acreditam num passado que já não existe, a falar sozinhos quando a personificação do medo irracional dos imigrantes berra aos nossos ouvidos. 

Ter uma posição construtiva sobre a imigração não pode partir de dentro para fora, não se pode basear na condição de os imigrantes serem úteis para o país que os acolhe. Quase sempre são pessoas que fogem ora da miséria, ora da guerra, ora de perseguições de variada ordem que põem em causa a sua sobrevivência. Estes são valores que devem preceder os valores meramente socioeconómicos. Esses valores integram-se na responsabilidade histórica indeclinável que pesa sobre os escombros da História de Portugal. 

Sem comentários: