5.12.24

O sangue oculto

The XX, “I Dare You”, in https://www.youtube.com/watch?v=qqflFMhkqHM 

Parte de mim é apeadeiro. A outra parte, o sol escondido sob os escombros do dia pretérito. Parte de mim não se parte nem sob a coação de censores impenitentes. A outra parte está armadilhada pela comiseração que continua a ser verbo assíduo. Parte de mim entrega-se de peito nu no auge da invernia. A outra parte é exilada nas águas quentes num meridiano a pedir contexto. Parte de mim fecha-se numa concha alimentada de sonhos. A outra parte está sitiada pelo desexemplo do mundo concreto. 

Parto de mim para desenhar as fronteiras num lugar que seja distante. Parto de mim sem a pretensão de ser a casa da chegada. No parto de mim, essoutro escondido num rosto impassível e no sangue imperturbável, vejo-me por fora de mim, como se participasse de um sonho em que sou espectador de mim mesmo. Uma parte de mim convoca a aprendizagem contínua. Só podemos ser aprendentes se nos deslocarmos da nossa própria circunstância e conseguirmos ser um eu no seu exterior.

Em parte, sou a procrastinação do futuro. A mão quente que se deita sobre o gelo, fautora do degelo que acalma os modos do Inverno e fecunda a promessa de Primavera. A mão quente que açucara a pele carente de blandícia, desaprovando a semelhança com a impessoalidade que sopra atrás dos ventos dominantes. Em parte, sou a máscara que se esconde do rosto fingido.

À parte, determino a latitude e a longitude dos meus domínios. Não dou crédito aos pesares que rimam com prantos repetidos. Fujo das multidões porque quero lucidez. Porque não quero que o sangue ceda perante a hibernação mandatada e temo que a exposição prolongada aos outros processe a minha adulteração. À parte, ateio uma fogueira iridescente para conservar o sangue em ebulição. 

Da minha parte, esbracejo o sangue oculto. O labirinto que anima o pensamento. A boca que semeia a fala pragmática. A prosa encantada com o poema que reinventa a manhã. O salto por cima do inclinado pudor. Da minha parte, atiro-me às cegas ao sortilégio do porvir. Para a parte que seja minha, sem o inferno por companhia, depor a inteireza de dizer o que não se esconde nas águas-furtadas do pensamento.

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