Tudo se configura na beligerância latente, no irreprimível gosto pela confrontação: somos opostos uns dos outros para não seremos uma entediante aliteração da espécie?
Do lugar onde alguém se situa, o planalto escava um lugar amplo na paisagem antes de chegar ao ermo onde se desfaz num precipício. Despenha-se na planície inferior, tomando conta do lugar antagónico. Desse lugar, o olhar está adestrado, o sangue ganhou hábitos geográficos, mas a identidade está abaixo das idiossincrasias. A identidade convive com os diferentes ângulos que servem para o olhar decantar o que se move à sua volta. Os olhares diferentes podem entrar em choque frontal se não estiverem educados para transigir com a diferença; se o seu código genético for a intolerância e arrotearem o caminho da incompatibilidade gratuita.
Parece que as pessoas vivem aprisionadas num labirinto onde só existem sentidos obrigatórios, caminhos de via única onde não podem circular em sentidos opostos. Como se fossem uma manada imprecisa, apascentada por gurus entronizados que ensinam os mandamentos e não aceitam divergências apalavradas; como se os sentidos proibidos proliferassem até serem bandeira reconhecida. Medram numa beligerância apenas latente. Uma beligerância gratuita: a oposição só pelo prazer da oposição, ou o espírito de contradição como um mosto frívolo. Confundindo oposição gratuita com o imperativo de cada um não ser mera parcela, indiferente, de um somatório que é convocado a ser um todo coeso. Esgrimindo na vacuidade de oposições infundamentadas. Confundindo os planos: o antagonismo célere e sem maturação não é sinónimo da metódica necessidade de gravitar num hemisfério alternativo que constitua dissidência fundamentada.
O sopesar do pensamento impede o sequestro pelo febril determinismo. As vitaminas do despensamento único (em todas as suas modalidades: a convencionada e as que contra ela protestam) povoam o contra-ataque diligente contra açaimes. De cada vez que um imperativo categórico escapar da gruta onde devia cumprir demorada pena de prisão, cabe aos curadores do pluralismo cercá-lo para o devolver ao cárcere, ou para o devorar. Sem beligerância militante, com a dose necessária que se oponha aos compêndios que adulteram a vontade.
Na cidade onde os cidadãos são reciprocidade, há quem corteje assimetrias. Há quem apareça na pose de panfletário, vestindo a samarra da moralidade – e samarra porque, protegendo a moralidade de embargos, a mantém intacta, junto à pele. Pessoas num patamar superior proclamam palavras graves e esbracejam fantasmas caso a turba, que precisa do seu aconselhamento, não preste atenção aos diligentes avisos. Às vezes, quando a turba não faz o favor aos senadores da moralidade, estes pioram o estado de coisas enviando uma mensagem ao destinatário: “eu avisei, em bem avisei.” Como se, do próximo ensejo, fosse irrecusável o dever de seguir a advertência gratuita dos druidas políticos.
Em antevésperas de eleições, as personagens que conseguem arrematar atenção pública ostentam esta pose paternalista. Os protagonistas, por efeito de escala ou por estarem convencidos que são imprescindíveis, jogam a cartada do voto útil. Quem assim procede está a mostrar que o voto que se dispersa em concorrentes de segunda ou terceira igualha é um desperdício. É um voto inútil. A expressão “voto inútil” não lhes sobe à boca. Mas sabemos ler nas entrelinhas. Ao quererem desviar o voto dos candidatos que não aspiram a vencer, que mal conseguem eleger deputados, os maiorais usam a arma retórica do voto inútil. Quem esbraceja o imperativo voto útil reconhece, sem o afirmar por palavras ditas ou escritas, que votos dispersos nos outros são votos inúteis.
É pena que ninguém se tenha lembrado de um código de conduta eleitoral. Para balizar o legítimo e o ilegítimo em campanha. Para punir os que quebrassem as regras desse código. Para evitar que os eleitores, os que não têm informação suficiente para decifrarem o que é um logro, não sejam sequestrados pela retórica ardilosa de concorrentes à eleição. Para que os cidadãos não se exponham a vieses causados pelos ardis dos candidatos. Para que os eleitores pudessem ter meios de decifrar os ardis. Desse modo, podiam recorrer ao voto (erradamente considerado) inútil, nem que fosse como penalização dos que invocam o imperativo categórico do voto útil.
É possível que numa sociedade mal formada e com pouca informação descodificada, o grito lancinante do voto útil compense. O esbracejar de fantasmas desata o nó górdio do voto útil, falsificando a análise servida ao eleitor: votem útil, ou ponham-se a jeito do deserto nuclear, o novo sinónimo de instabilidade. Esta convocatória tem sangue totalitário: ou nós, ou o caos; e como o cidadão comum tem um medo atroz do caos – outra prova da sua fidelidade canina aos personagens com visibilidade pública, em quem, por inação, depositam o poder de serem os seus porta-vozes – sucumbe ao apocalipse prometido pelo voto inútil.
Este é um apelo totalitário, porque distorce intencionalmente as bases das decisões de muitos cidadãos; e é totalitário porque sela a inutilidade dos outros sem condições para serem protagonistas. Apetece perguntar: e por que não se resume a dois o concurso eleitoral? Por que não se proíbem os outros concorrentes, os que não podem ganhar? (E, ato contínuo, perguntem se isso é democrático.)
Oxalá haja muitos eleitores que sabem pensar pela sua cabeça, sem aceitarem a mediação de uns iluminados que monopolizam o espaço público. E que esses eleitores exibam o mau feitio próprio de quem age contrariando as sugestões enviesadas, gratuitas mas pesadamente interesseiras, dos sacerdotes do voto útil. Para atomizar o espaço público com uma miríade de concorrentes e lançar a semente do terrífico caos.
Ao menos, esses saberão honrar a autonomia de pensamento e não capitulam perante as falácias dos superiores. Para poderem dizer, com a voz hercúlea e bem sublinhada: inútil é o voto útil.
Somos o lobo de nós mesmos. O que desmente o exclusivo da racionalidade. Os ingénuos protestam contra a irracionalidade estonteante da humanidade: as guerras, sempre as guerras, a maldade intencional, a mentira, os atos de brutalidade destinados ao próximo, as más intenções, a indiferença pelos outros, a desconfiança como critério – o somatório de todas as parcelas: a brutalidade humana.
Os ingénuos ajuízam indevidamente. A irracionalidade existe porque somos racionais. Não se espere de seres racionais que esgrimam a condição a seu favor e neguem validade ao seu oposto. É por seremos racionais que acabamos sitiados pela irracionalidade. Como antítese da racionalidade, a irracionalidade é um seu subproduto. Do miradouro antropocêntrico diz-se que não se espera racionalidade das espécies afastadas da racionalidade, apenas a irracionalidade que lhes é inata. Já de nós, humanos, tanto podemos escolher a racionalidade como sermos voluntários da irracionalidade. Para atestarmos a irracionalidade temos de partir de uma posição de racionalidade.
Os compêndios andam a exagerar na mistificação da humanidade. Muito embora os que divergem de uma cândida apreciação da humanidade tenham o seu palco, ainda prospera a ideia centrípeta da racionalidade humana. Os otimistas antropológicos são os que mais depressa apanham deceções. De cada vez que um grupo decai na irracionalidade, não conseguem compreender a tendência de o Homem virar o revólver na sua direção. Se fossem cultores de uma racionalidade temperada, admitiam a possibilidade de os humanos se afastarem do que é racional.
A espécie talvez tenha uma natureza diferente da que é emoldurada pelos sistematicamente otimistas. E serão estes, presos ao incorrigível otimismo (porque é sempre mais confortável ser otimista do que medrar nas angústia do pessimismo – quanto mais não seja), que ficam em dívida à racionalidade. A surpresa com que são apanhados quando mais um episódio de irracionalidade é vertido para os compêndios da humanidade, ou as invetivas que dirigem aos que rompem o ilusório consenso sobre a racionalidade humana, são de uma ingenuidade que não quadra com a racionalidade.
São mais racionais os que não resistem, ou não se coíbem, a provar a irracionalidade, do que os que fingem que a irracionalidade é desmentida pela racionalidade irrenunciável dos humanos. Falhar, sem termos de saber se é intencional ou um acaso, vem tatuado no código genético da racionalidade.
Os lamentos pueris que acabaram de descobrir que há humanos que são imoderadamente irracionais deviam ser chamados à terra. A lua é a terra dos lunáticos, não a Terra.
Parecia que a vida era o negativo de uma fotografia. Ele próprio, ciente da irrelevância metódica a que se dedicara, sentia-se a película negativa de uma fotografia. As mãos pousavam sobre a chávena e o avesso tornava-se o substantivo forte: a chávena, plúmbea, desfocada; os restos do café, no fundo da chávena, a revelarem a existência de café albino.
2.
As palavras escritas na folha gasta não ficavam inteiras. A folha estava na horizontal, perpendicular ao tampo da mesa. As palavras escorregavam pela página como se tivessem alergia. Assim que encontravam o exílio, ninguém conseguia dar conta do seu paradeiro. Furtivas, arremetiam contra a página – deixavam-na vazia, o seu estado original. Talvez por não gostarem de objetos arcaicos, as palavras ambiciosamente devolviam à procedência os atavismos. As palavras, solícitas, insurgiam-se contra as prescrições. Não sabia se eram as palavras a ganhar vida própria (uma possível farsa), ou se era a metáfora de si mesmo.
3.
À chegada ao café, estava o habitual rapaz que ajuda a estacionar os carros em troca da generosidade dos condutores. Já não ia àquele lugar há uns meses. O rapaz, que nunca tivera bons ares, estava um andrajo (a maldita droga que, enquanto for droga e por isso vetada pelos bons costumes, continuará a levar para a sepultura gente de mais, nova de mais). Emaciado, flagrantemente emagrecido, as mãos corrompidas pela sujidade tatuada na pele, arrastando-se à espera de generosidade. O seu pecúlio não devia ser demorado. As leis que encenam proibições em barda deviam ser julgadas por crimes contra a humanidade. Elas e os seus feitores.
4.
Na esquina, um cartaz publicitário anuncia o concerto de um músico geronte. A sua fotografia está em grande plano. O músico continua a exibir a cabeleira que sempre foi cartão de visita, disfarçando; a pele enrugada não engana (apesar dos nítidos retoques de fotógrafo amador). É como se a fotografia tivesse um pano de fundo embaciado e os lugares mais perto do palco habitassem um logro. Todos precisam de réditos que cuidem do seu sustento. Até os que já cheiram o acidulado projeto da reforma. Maldito capitalismo.
5.
Na grande cidade, os mendigos combinaram e fazem-se acompanhar de um animal de companhia na mendicidade (um cão, um gato, um coelho). Usam as armas que podem. Jogam com a sensibilidade das pessoas que seriam insensíveis à esmola se os mendigos não estivessem acompanhados de animais de companhia. Dão esmola mais depressa pelo cão, ou o gato, ou o coelho que faz parelha com o pedinte. Não se diga, a despropósito, que é o espelho da desumanização.
6.
Há dias leu num jornal que quase 20% das pessoas vivem sozinhas. Ele tem medo da solidão. Muito embora goste de estar duradouras horas sozinho. Mas isso não é o refrão da solidão que condena os solitários. É uma dor que tem pelos outros que estão reféns da solidão. Se pudesse ser legislador por um dia, assinava um decreto que proibisse a solidão. Aos 20% que estão sozinhos haveria de se arranjar uma companhia, para deleite do Estado paternalista que ainda não se lembrou de tal. Num ápice, desmentiu o liberalismo que encarna. Um observador diligente descasa-se da teoria quando esta castra a sua sensibilidade.
Os ponteiros do relógio saltavam como cangurus, emprestando loucura ao tempo que arriscava o devir. Parecia uma arritmia: se tivessem sido registados os sobressaltos dos ponteiros dir-se-ia que o tempo, naquele relógio, se tornara lisérgico, fervendo e depois arrefecendo para voltar a ferver numa pulsão irrefreável. A manhã antecipou-se ao entardecer e o corpo frenético estava à mercê do solipsismo de um eclipse.
Ninguém sabia que durante essa exaltação imoderada do tempo se encontrava a hora certa. A janela de tempo era muito larga, mas um perito jurou, sobre as fundações da sua sapiência, que era por lá que se encontrava a hora certa. O que queria dizer que a hora certa já pertencia ao passado. Talvez não importasse saber do paradeiro da hora certa. Interpelaram o perito: a hora certa é determinada no exterior, ou somos nós os seus tutores?
O perito adormeceu no silêncio. Esperava-se mais de uma eminência parda. Os estatutos custam a ganhar um selo de autenticidade. À custa do estatuto, muitos senadores entornam sabedoria que, julgam, é feita à prova de verificação, à prova de contestação. O perito dissera que já fora a hora certa e era isso que devia contar. Perdera-se a hora certa no meio da deslumbrante coregrafia do tempo, que não se contentava em ser uma contagem decrescente, arrumando a desesperança dos que estavam à sua mercê. Deste tempo sem regra não se dissesse que era pródigo, ou amigo das pessoas que passam pelo seu crivo. O tempo tinha sido ser atirado para dentro de uma culpa: não podia haver uma hora certa. Não podíamos estar todos atrasados.
A hora certa podia ainda estar à espera. Não se transigisse com este imperativo categórico: tornar a hora certa dependente do singular colhia a contestação dos que tiravam as mordaças. Protestando contra o determinismo do singular, convocavam o plural para inventariar a possibilidade das horas certas. Algumas haveriam de estar inscritas no plano do devir.
A essas horas certas, ainda estaríamos a tempo de chegar a tempo. E todos foram dormir descansados.
Não preciso de provas sobre a pele que navega entre os meus dedos. Digo: podia fazer dela um mapa – e mais digo que a probabilidade de erro seria insignificante. Podia sindicar essa pele de olhos fechados que o mapa seria de uma inteireza que faria corar de vergonha os cartógrafos profissionais. Pois a pele que navega entre os dedos é o meu salvo-conduto, o braille necessário se me fizesse passar por cego.
Mas mesmo que fingisse a cegueira seguiria de cor a cor da pele que transita nas minhas mãos. Habilito-a com a quimera que está por cima das aspirações insondáveis. Desenho na pele a cor da minha voz, as palavras ecoando em sítios avulsos, onde calha deixá-las como tatuagens que não adulteram a pele. E tu sabes: não quero a minha assinatura para nada, se não para a outorgar como prova de mim na pele sumptuosa de que me fizeste tutor. Para nos dispensarmos de códigos de conduta.
Desse outorga não ficaram testemunhos que façam prova. Não precisamos das provas documentadas. As memórias hasteiam-se no dorso do tempo com as palavras que deixamos na almofada, no suor que amadurece as paredes, nas alvoradas que conhecemos antes dos outros. Não deixamos as memórias para ninguém. São nossas, a antítese do património da humanidade.
Se fosse preciso, fazia legendas ao desenhar o mapa da tua pele. Seriam formas tentadas de poesia, talvez; um catálogo de intenções; o ecoar de memórias que se perpetuam nas avenidas dançadas na tua pele fortaleza; um sortilégio que destrona tempestades, congraçando angústias que pudessem ser apalavradas a destempo. De cor, as cores todas que vertemos para além do arco-íris, pois o nosso vocabulário, a gramática de um amor inteiro, não cabe na exiguidade das cores. Nem por tantas serem são um obstáculo à codificação da tua pele, que desenho de cor imerso no desjeito para o desenho.
Olhamos o rio que esculpe o caudal, um fino fio de água que esconde a sua grandeza à escala 1:1. Desde o miradouro, dir-nos-íamos tutores do demais. Não queremos essa atalaia. Apenas exaltamos uma paisagem mirífica, como se nela encontrássemos inspiração para as estrofes que simbolizam o mapa da tua pele, feito de cor, os olhos propositadamente vendados, o medo de errar desterrado para algures. Somos apenas a colossal página de um amor singular.
Deixamos que o vento espie as arestas dos nossos rostos. O vento agressor não descompõe o sortilégio da paisagem. Não adultera o mapa da tua pele. Os meus dedos param o vento e o teu rosto fica protegido contra o tempo derrisório.
Há dias, uma notícia chocante: 30% dos jovens já não moram no país. Debandaram. Desta emigração não se diga que foi voluntária, para não estragar a carga dramática da notícia. (Uma coisa é saber o que representa tão elevada emigração dos mais novos, outra é interpretar a notícia que soa a deserção.) Fogem cérebros que podiam ficar por cá a contribuir para uma nação mais próspera. Fogem jovens, confirmando que esta é uma sociedade de calvos e cãs. E nós, que já não pertencemos aos jovens e continuamos na “santa terrinha”, agradecemos ou entregamo-nos a prantos?
Eu digo que é uma boa notícia. De mim não digam, em jeito de libelo acusatório, que sou egoísta e que a minha análise não tem cabimento. Rebato o egoísmo: é uma boa notícia para os jovens que encontram no estrangeiro condições que não têm no país onde nasceram – muito embora um governo tenha inventado o reembolso de propinas que os recém-formados pagaram se não emalarem os pertences e rumarem ao estrangeiro. Vão para lugares que recompensam o seu esforço, ajudando-os a perceber que as pestanas queimadas e o investimento (dos pais e pessoal) não foi em vão. Completo a defesa contra o egoísmo que se abata sobre mim: quanto menos jovens conviverem connosco, mais enfadonha se torna a sociedade, repleta de gerontes que se agarram a privilégios e recorrem à usura do “idadismo”; e menor é a probabilidade de a segurança social ter recursos para pagar a reforma quando tiver idade para a receber.
Agora é a vez de me defender da acusação da análise sem cabimento: destroçar da terra mátria é uma decisão legítima dos jovens, sem que sobre eles caia o presumível dever moral de contribuírem para a sociedade que os viu nascer e medrar. Primeiro, estão em início de vida, é legítimo que queiram tratar da sua vida. Se o tratar da vida levantar o véu da emigração, não devem hesitar. O mundo já é cosmopolita de mais para os jovens ficarem presos às saias da portugalidade. Segundo, se os mais novos sentem o rarear de oportunidades na terra-mãe, só um egoísmo atroz dos instalados os pode prender a um país que não olha por eles. Por um dever de reciprocidade, a emigração dos mais novos é legítima: se os conterrâneos não cuidam deles (porque muitos deles mal conseguem cuidar de si mesmos), os mais novos estão desobrigados desse dever de solidariedade.
Os nacionalistas de diferentes linhagens (os tradicionais, agora em erupção cutânea significativa; e os que não costumam hastear essa bandeira, mas o fazem por oportunismo) devem aceitar o romper do cordão umbilical dos jovens. Se a afamada mátria não é, contra os prognósticos de ilustres mandantes, um cortejo de virtudes; se esta é uma terra que anda para trás, contra as profecias autorrealizáveis dos que colonizam o espaço mediático com propaganda em barda; quem recusar a legitimidade de os jovens procurarem lá fora uma oportunidade é avalista de um egoísmo soez, deslegítimo.
Invocar chamamentos gregários para cimentar a pertença dos jovens é hipócrita. O dever de contribuir para a vontade dos gurus que encenam a mátria como um paraíso não é igual entre os membros da sociedade. Os mais velhos, os que já se habituaram à terra que não é de mel e de sonhos, os que tiveram as oportunidades que são cerceadas aos mais jovens, devem suportar o ónus maior. Os mais novos, que acabam de sair da universidade e querem passar à prática o investimento pessoal da infância, da adolescência e do neófito estado adulto, não devem ser aprisionados a um sebastiânico, e eternamente prometido e entretanto adiado, devir nacional para o qual somos convocados.
As ideias e as propostas (agora que estamos em pré-campanha eleitoral, depressa adulteradas na forma de promessas) com o propósito de fidelizar os jovens ao território mátrio podem ter boa imprensa e comover os mais desatentos (e, vá lá, os que padecem da doença do otimismo incorrigível). Prometer a devolução de propinas e prometer que os jovens pagarão menos impostos é paradoxal, por ferir fundo a igualdade que tanto move os embaixadores da “ética republicana”. E é um logro: querem enganar os jovens, como se o desconto nos impostos e a devolução de propinas compensassem o exílio voluntário em países onde os jovens encontram melhores condições para começarem a construir uma vida.
Não, egoísta é quem ilude os jovens com promessas desastradas que teriam o condão de os manter na terra mátria sem que pudessem tirar partido do investimento pessoal que fizeram na sua formação. Os partidos, que já andam no típico hiperativismo eleitoral(ista), deviam fazer um pacto de cavalheiros para não prometerem as mentiras que prometem aos mais jovens. É deixá-los partir, eles que pertencem a uma geração abertamente cosmopolita, e encontrar lugares onde se possam realizar. Para não serem reféns de uma bandeira e de um hino e da verborreia pífia, e imoderadamente egoísta, dos que esbracejam a sua superior linhagem moral, lá no pedestal onde exibem privilégios à conta do passado.
Não podemos desejar que os jovens vegetem por cá, pois não?
Uma batalha tremenda perdida para o adiamento: dois amigos – ou dois conhecidos – aparecem num telefonema, falam sobre coisas avulsas e terminam a charla prometendo que têm de “combinar um café” para “um dia destes”. É uma promessa com linhagem dos políticos, aquelas que se afivelam na boca que não consuma as intenções apalavradas.
“Um dia destes” é a geografia do nunca. O nunca que o pudor manda esconder das palavras ditas; seria uma prova de descortesia, o aval à impressão que a companhia do outro não é desejada ao ponto de encontrar tempo na agenda (esse mal: está sempre tão preenchida, menos naquelas alturas em que não se sabe o que fazer) para um encontro breve com essa pessoa que o olhar já não avista há tempo, talvez, de menos.
“Temos de tomar um café um dia destes” é a manifestação de um nunca que não se admite. Ou de um adiamento que se vai adiando de adiamento em adiamento até acabar por ficar selado no rosto do nunca: um deles morre antes que ao “dia destes” tenha sido reservado um lugar competente no calendário. Envelhecer dita um esquecimento obrigatório que se consolida nas estantes do tempo, como se fosse necessário esquecer partes de um passado sobre o qual nem existem queixumes. É uma nostalgia despida de conteúdo, o olhar militantemente escanção do tempo que se vive e do futuro quando lá chegar.
Ou então, o “dia destes” que não tem cabimento mostra a desimportância de alguém. Talvez do par que constantemente jura que ao chegar um “dia destes” farão das tripas coração para irem tomar um café e pôr a conversa em dia. E ficam sem saber se o café sucessivamente prometido para “dia destes” é o desagravo da nostalgia que não se quer ateada, ou se a conversa em dia é aferida pela distância de um telefonema. Ou se eles são, afinal, pouco menos do que mutuamente irrelevantes.
Diz-se, em mal disfarçada confidência, que os baixos precisam de escadote para verem as coisas – e o escadote é o equivalente aos binóculos que ampliam a realidade para os míopes (e os incréus). Mas é infundamentado. Os baixos veem na mesma, não precisam de escadotes. São diligentes a procurar um expediente para verem o que a baixeza podia ocultar: dirigem-se a promontórios; não se colocam atrás de quem seja mais alto; espreitam entre os corpos da multidão; não frequentam multidões (há de ser provado, estatisticamente, que os baixos são os maiores misantropos).
Mais depressa um míope (ou um increu atacado pelo princípio geral do ceticismo) se socorre de binóculos. Precisa de testemunhar o que se passa à sua volta. Se o meio exterior for um pano baço que se abate sobre o dia composto, precisa de o ampliar para o tornar inteligível. De outro modo, sente-se perdido. Náufrago sem salvação: desconhece os contornos do meio exterior, balbuciando o medo próprio de quem avança contra a penumbra, perdido de si.
Também se encontram os que se ufanam de não precisarem de binóculos ou de qualquer outro doping inventado para arredondar fragilidades. Passeiam um ar de superioridade e desdenham dos que têm de comprar binóculos; desdenham dos baixotes que andam com um pequeno palco de três degraus a tiracolo (em sentido metafórico) para nele se empoleirarem e poderem tirar as bissetrizes das coisas lá fora. Porém, são os mesmos que se agarram a disfarces para fingirem uma condição que os diminui (a baixeza elevada através de sapatos híbridos que têm tacões elevados; a incapacidade de interpretarem o que lhes passa sob o nariz – para compensar esta fraqueza um binóculo, por potente que seja, não tem serventia).
Os gagos tartamudeiam; os obesos não escondem os opíparos manjares e o apetite constante; um cinéfilo perde a conta às vezes que foi ao cinema numa semana; um militante milita, com compromisso incontestável e um desprendimento arrasador; um narrador esquece-se da vida própria, nela embebendo a vida de quem narra; os crentes acreditam – e é só isso; os estetas desconfiam da fealdade; os nefelibatas usam a boémia da noite sem a contaminarem; os espiões esqueceram-se da sua própria existência, são viciados em vidas outras; o gongórico desconhece o minimalismo (e as virtudes do silêncio); há um numeroso exército que finge como quem mente com os dentes todos; “e assim sucessivamente”.
Todos são o que são e como são. Mesmo que isso signifique uma plêiade de disfarces e um desmentido formal (mas não assumido) de tudo o que encenam ser.
Qual era a identidade dos fantasmas que ameaçavam com as suas enormes bocas abertas, como se quisessem abocanhar as vítimas? Pouco interessava, se fosse mantida a ideia de que os fantasmas não são tangíveis. Ainda assim, prometeu que ia “dormir sobre o assunto” (como o povo costuma proclamar, com a pose solene de quem transpira erudição e perícia técnica). Mas ninguém perguntou ao assunto se se importava. Não dependia só do peso de quem fosse dormir sobre ele. Não é a mesma coisa arcar com o peso de um sono de sessenta quilos e de outro de noventa e cinco. O assunto podia não sobreviver ao peso demorado de um sono agitado de noventa e cinco quilos. O efeito do esmagamento era fatal. Ao acordar, o agora estremunhado corpo de noventa e cinco quilos encontrou o cadáver do assunto sobre o qual dormiu. Sobressaltado, o corpo de noventa e cinco quilos correu em auxílio do código penal para descobrir o crime que cometeu. Quando regressou ao quarto, o assunto tinha desaparecido da almofada. Revistou a casa toda. Do paradeiro do assunto defunto, nada. As janelas estavam fechadas, ele não podia ter fugido. Aliás, o assunto estava morto, não podia ir a lugar algum (pensou: “ponto final”, para se desembaraçar dos equívocos que começavam a embaciar o pensamento). De repente, acalmou-se. A prova do assassínio do assunto tinha desaparecido. Talvez um assunto morto se extinga depressa, incluindo as provas físicas da sua existência. Um assunto morto deixa de ser um assunto (“essa é a verdade”, disse, noutro assomo de erudição popular). Ontem deitou-se sobre o assunto para, dormindo sobre ele, pedir ajuda a Hipnos (depois de desmascarado Morfeu, que não é o legítimo deus do sono). Agora que o assunto estava morto, desapareceu a pendência. O dia não precisava de ser plangente.
No bojo da paciência, o pândita atravessava a estepe. Prometera que ia até Calcutá. Não perguntassem “porquê Calcutá”, a escolha foi ao acaso. Atravessava a estepe quando uns tímidos flocos de neve começaram a precipitar sobre o cabelo hirsuto. Não tinha frio. Se a neve fosse uma providência, começava a beber epifanias. Pelo que sabia, a neve naquela estepe começava a colonizar a paisagem um pouco mais tarde. Nunca se sabe, com o clima maluco – puxou lustro à propensão inadiável para marear os lugares-comuns.
Tão depressa precipitaram como tão depressa se extinguiram, os flocos de neve. A estepe continuava a exibir a mesma paisagem ocre, despida de árvores, as longas planícies encadeadas, sem se saber onde uma termina e começa a sua sucessora. Nenhum vestígio da neve timorata que caíra antes.
O pândita lembrou-se da estepe mongol quando já estava em Calcutá. Era o episódio mais vívido da viagem até Calcutá. Parecia ter sido acometido por uma amnésia localizada que impedia de tirar da memória fragmentos da viagem. Parecia impossível: tanta distância percorrida, tantas e diferentes paisagens atravessadas, tantos idiomas falados por pessoas tão desiguais, e só se lembrava da estepe por causa da neve repentina que caiu durante uns instantes.
Talvez porque em Calcutá estava um calor insuportável, alimentado por uma humidade que fundia os corpos com as roupas. Estaria a lembrança a ser invadida por um episódio de frio que, todavia, na altura não considerou um incómodo. Não era a razão plausível. Passara por outros lugares reivindicados pela invernia, com neve até aos joelhos e temperaturas de fazer congelar as extremidades do bigode.
E agora, que estava em casa e se recordava como em Calcutá evocou a neve breve na estepe mongol, irradiava outra pergunta: por que somos reféns das memórias – ou de como são as memórias que ditam o andamento dos dias que passam, uma distração do presente que o presente não perdoa.
Encantado com a luminescência da cidade deitada sobre o rio em socalcos sem métrica, uma luminosidade quimérica que recompõe os eternamente desgostados com o Inverno, comparou-a com a constante neblina que embaciava os olhares em Calcutá. E disse: quem dera Calcutá. Para ditar, em livro de atas, que os lugares outrora demandados são apetecidos. Como metáfora da perene insatisfação que não é um embaraço. É desta insatisfação que medram as oportunidades, trespassando a indolência que condena à desilusão.
Estas eram as linhas tortas que endireitavam o futuro. Havia muita gente que, a propósito do futuro entretanto desembaraçado, mergulhava numa névoa onde só havia angústia como elemento químico. Não sabiam se lamentavam o despropósito do devir ou se era ao passado que deviam pedir contas.
As responsabilidades moravam sempre do lado de fora. O passado não tivera nada a ver com as pessoas, nem elas a ver com o passado. Um tremendo buraco negro que erodira o passado de tal maneira que era esquecido, ou como se não tivesse acontecido. Pior, só os nostálgicos que atrelam o passado ao futuro – ou o futuro ao passado, ainda não decidiram se a ordem existe ou se é aleatória. O que queriam era fazer uma fogueira com o passado, secretamente aspirando a mistura de odores como se fosse suficiente para banir o passado. O que sobrava nas bibliotecas, nos arquivos e nos recantos das memórias era demitido do passado.
Entretanto, as pessoas docemente iludidas pelo divagar madrigal assinavam o manifesto contra o futuro sem serem partidárias do passado. Acusavam-nas de imprevidência. Ou de incoerência (o que era pior, de acordo com os detratores). Os cavaleiros da esperança sem paradeiro tomavam a palavra arqueada sobre o tempo como se fosse a sua extinção. Ficavam as palavras e um deserto de tempo, pois é o tempo que precisa de palavras.
E assim avançavam pelo futuro, destronando o tempo presente. Nunca chegaram a entender que um futuro sem presente não existe. Saltavam o presente e nunca chegavam a perceber o que é o futuro. Havia filósofos de serviço a tentar explicar as funções complexas que, todavia, dispensavam provas matemáticas. Um deles, perante a incredulidade de um náufrago de todos os tempos, simplificou: é do domínio da intuição, não tens de semear o sortilégio com a fortificação da razão.
Nas horas boas, reconciliavam-se com as diversas manifestações do tempo. Conviviam, algo resignados, com os lados do passado que não apetecia recordar. Escondiam-se dos momentos que mereciam contemplação: eram modestos e julgavam que as dádivas do passado lhes eram devidas, não mereciam loas a condizer.
E assim partiam para o futuro, como se estivessem a começar de uma folha em branco. Podiam-lhes dizer que nasciam todos os dias. Eles agradeciam a lembrança.
A adoração pelo vinho ia ao ponto de se interrogar se seria terapêutico o mergulho num tonel com vinho. Nem ocorreram os perigos que corria se o fizesse, pois não é crível que o efeito prolongado da imersão em vinho seja diferente da imersão em água (no que ao engelhamento da pele diz respeito), ao que se somariam os efeitos deletérios da fermentação. A confirmar-se que a fermentação estava no auge, talvez fosse o ato terminal da sua vida se a lucidez entretanto omissa o atirasse para os braços tentaculares do tonel repleto de matéria vínica.
Nas juras que alinhava na métrica do tempo, não havia muitas que reconhecesse. Chamar-lhe-iam mentiroso, e seria difícil livrar-se da intenção mitómana se, contra a sua palavra, se jogasse a palavra plural das testemunhas. Seriam testemunhas desabonatórias. Só que ele não andava a arregimentar testemunhas que o abonassem. Já ultrapassara essa fase: deixou de viver para a sindicância dos outros. Da mesma forma que dedicava uma olímpica indiferença aos outros, esta era a petição que lhes dirigia: que lhe dedicassem a mesma, olímpica, indiferença. Os empates técnicos são a fonte da igualdade.
Julgá-lo-iam à revelia. Era sabido que não se submetia à sindicância alheia. Os outros não estavam na disposição de deixar passar em branco a sistemática mentira, tantas as juras com a curadoria de outras pessoas (os seus fieis depositários) que ele desmentia terem tido História. Os habituais tutores dos bons costumes decidiram que o descontrato das juras tinha de ser punido. Era preciso reiterar o exemplo: se não fosse sancionado, muitos outros teriam o incentivo para mentirem às suas juras. A jura tinha de ser uma denominação de origem protegida.
A audiência foi marcada. Na véspera, a noite fora de boémia. Não foi de propósito – ele há sempre atestados médicos, um familiar que deixou de pertencer aos vivos, ou qualquer outro pretexto, desde que convincente, para que alguém se exima às responsabilidades agendadas. Não foi intencional: isto é, não marcou encontro com a boémia extravagante para se esquecer da audiência. Esqueceu-se, foi só isso. A indiferença ajudou ao esquecimento: quando foi notificado, deu tanta importância que, ato contínuo, destinou a notificação ao lixo (irrecuperável).
Foi à revelia que os juízes que capitalizam a moralidade o julgaram. Ele sonhava com um mergulho terapêutico num tonel com afamado vinho tinto. A boémia prosseguia por outros meios.
E se dissesses que tens medo dos deuses, entendia-se como uma epifania?
Os corpos emagrecidos arrastam-se languidamente pela rua ficcionada. Fingem. Mas, pergunta-se, quem não (se) finge? Parece que somos todos dados às alturas, numa omissão propositada da humildade – esse descapital que deixa de se aprender nas escolas à medida em que a glorificação do eu atinge latitudes demenciais.
Tu dizias, para desconversar (talvez): o janeiro está-nos a fugir debaixo dos pés. Como se cada dia fosse esventrado pelos passos que dávamos, nós insistentemente depauperados enquanto janeiro fosse existência tangível. E porque somos contra janeiro? – perguntei, e só obtive o silêncio.
Não sabemos com quantas pessoas angariadas para o palco do crime nos cruzamos num dia. Elas não exibem o registo criminal a tiracolo. O anonimato do crime é a cumplicidade que todos temos com os que já foram enredados no labirinto do crime. E é a garantia que não seremos abjurados depois de termos sido autores de um crime. Não é disso que falo: penso naqueles que já têm a sua conta à conta do crime e nunca caíram no apertado escrutínio das polícias e dos tribunais. Os criminosos que guardam para si já terem sido meliantes de qualquer espécie. Fogem de nós como o janeiro que quer depressa dar lugar ao fevereiro consecutivo. Ou então somos nós esse fevereiro, apressadamente a distanciar-se do janeiro impulsivo.
As olheiras do homem do lixo podem conter muitas possibilidades. Uma noite de luxúria (a luxúria não é só para os novos). Uma insónia mal combatida. Uma incursão pela boémia militante, com débito do sono. Um part-time a desoras, para compor o orçamento da família que é curto (apesar do socialismo promissor hasteado como única alternativa da regência). O homem do lixo carrega os esbanjamentos que deixamos à sua tutela. Como se fossem o janeiro que ainda não chegou a meio e já é uma meada convulsiva. O homem do lixo cuida de deixar a higiene possível ao fevereiro que esperamos vir em lugar do janeiro fracassado.
E ninguém percebe que fevereiro é o mês com a menor estatura. Nem por ser bissexto o ano, o fevereiro se safa da meã condição. Ao contrário dos meses que se esticam no promontório, ninguém foge de fevereiro.
Arregaças as mangas à coragem, dizem-te para beberes de um trago o sumo do limão. Eles não sabem que para ti os limões são doces. Bebes, de um trago, como pediram. Provas a tua coragem. Disfarças: sabes que não se afere a coragem pelo embargo que escondes dos outros. Sabes que não interessa acolher a coragem, que não é medida pelo olhar dos outros.
O limão é que te escolheu. Arrumaste o corpo no apeadeiro onde o limão esperava por ti. Chegaste ao cais e reparaste no limão que caiu de madurez excessiva. Estavas sozinho. Ninguém podia reprovar a intenção de te saciares na acidez do limão.
(Pressentiste que o limão era ácido: é da norma os citrinos empunhados em árvores do domínio público serem ácidos: a pública disponibilidade determina a sua má linhagem – admitindo que a acidez quadra com uma má linhagem, o que não é admitido por todos. As provas de madurez não demoviam a ideia da acidez do limão derrubado.)
Meteste os dedos na casca rugosa do limão. Despedaçaste a casca com dois golpes dos dedos, o resto da casca veio atrás com o pelar sistemático dos dedos. O limão estava maduro. Aqui e ali, maduro de mais. Os gomos desfizeram-se na boca. Sentias o sumo módico a agredir as gengivas que se ofereciam como parede à passagem do fruto. Confirmava-se a acidez do limão. Exultavas: os limões foram feitos para serem inventário da acidez pura.
Depois vinha um lugar-comum preceituar sobre o sumo do limão. Um golpe astucioso para transformar a acidez em doçura. O açúcar somado à polpa do limão cuidava da mediação entre a acidez e o dulçor. As pessoas, entretidas com uma alquimia pária, estavam arredadas da lucidez. O sumo adoçado adulterava a raça do limão. Se fosse para fingir os impropérios quando a boca era testada pela acidez do limão, comesses – por exemplo – laranjas (das naturalmente doces).
Não desaprendias. O limão convivia com a incorrigível acidez. Como dizem os matemáticos, dois negativos totalizam um positivo.
Pelos poros do xisto, as palavras entarameladas. Vozes guturais como que subindo às paredes, em pose alpinista. Os corpos sem arnês. Desobedientes. Talvez irresponsáveis, ou apenas intencionalmente negligentes.
A manhã testemunha levanta-se, estremunhada. É preciso tirar do dia a sua aura, fazer dele um festim. Como se o dia tivesse cio e fosse pródigo. Um dia cantante, os pássaros efémeros levantando voo e deixando o chilrear discreto como som de fundo. As horas moventes são a folha de papel onde se adicionam as palavras por acaso. Espaçadas pelo rasurado ideal de quem não se satisfaz com a forma original.
Do miradouro, um olhar de atalaia. Inquisidor. Desfila sobre a paisagem que se estende em socalcos mal definidos. E interrogações: como seria aquele chão primitivo, antes de ter sido colonizado pelos antepassados? Quantas alegrias, e quanto sofrimento, foi aquele chão transfigurado em cidade testemunha? A cidade não mostra as rugas quando o olhar-atalaia a sonda ao longe. É um disfarce – ou apenas a circunstância do olhar distanciado que se confunde com uma penumbra a destempo. Os miradouros vigiam-se a partir das diferentes trincheiras em que se situam.
A matéria válida incendeia a página dantes branca com um amontoado de palavras e de rasuras. As rasuras são a honestidade das escolhas que se sobrepõem umas às outras. São cicatrizes do pensamento que se desdobra em múltiplas camadas, um vestígio da insatisfação interior que se abate como exigência interna. Encontra um parágrafo que foi todo rasurado: um arrependimento, e dos grandes, para ditar a abolição de um parágrafo inteiro. Mas também parágrafos inteiros sem uma rasura. Ficou por determinar se foi por distração ou um desvio de empenho.
No fim do exercício, o olhar inquisidor desafia outra avaliação: é preciso passar o texto a limpo? Tantas as rasuras, intercaladas por manchas de texto sem uma rasura, tornam legítima a demanda. As rasuras não podem ficar escondidas. É o preço da honestidade desarmante. As cicatrizes que o texto deixou à medida que foi deixando os alicerces para se aproximar de um estado final. Todavia inacabado.
O olhar desafiante, interiormente desafiante, diria ser a tutela de outras rasuras se não tivesse ficado determinado, pelo livre arbítrio do tutor, que aquela era a sua forma definitiva. À prova de rasuras mais.
As salas de estar são o lugar onde se conhecem desconhecidos. Rivalizam com a teoria das probabilidades: quem antecipa a estadia numa sala de estar não pode pressentir as pessoas que vão coincidir consigo. Pode ser uma pessoa emudecida – diriam: não há pior forma de conhecer um desconhecido, mas atendendo à mudez voluntária do sujeito, pode ser ele a dizer-nos, através da sua mudez, que o melhor é não o quereremos conhecer. Pode ser um palrador, que tem opinião sobre qualquer assunto – e a estadia numa sala de estar presta-se a uma lata mundividência de assuntos, pois as salas de estar têm televisões habitualmente sintonizadas em canais que passam um horrendo cortejo de notícias. A opinião fecunda é o alinhavo de um excesso de ignorância: o pior ignorante é aquele que de si tem um autorretrato de intelectual. Aprende-se alguma coisa com o ignorante encartado que, a cada palavra salivada, excreta um obscurantismo loquaz? Aprende-se a ter tento na língua e freio na opinião quando alguém se deita a adivinhar ou, o que é pior, a tresler as palavras que surgem em forma de ideias que, todavia, são incapazes de assimilar na sua apta interpretação. Aprende-se a ser o que não se deve ser. E se alguém, a meio da estadia na sala de estar, procura corrigir os dislates do catedrático apedeuta? Pode sair tolhido, que um ignorante não admite que a sua ignorância seja desflorada. Pode o paciente corretor dos dislates alheios tomar pose pedagógica, tentando provar, com as melhores e irrefutáveis provas, que o prevaricador da inteligência se expõe ao ridículo. O mais certo é o prevaricador retorquir com arrogância, disfarçando a incultura com uma soberba intimidatória. Numa sala de estar, a melhor conduta é a mudez e a discrição. O anonimato sempre fez bem. Sobretudo numa sala de estar.
A tendência que recorta a subida da direita populista e da extrema-direita tem motivado manifestações artísticas politicamente comprometidas. Esses artistas aproveitam a arte para comunicarem política, opondo-se àqueles movimentos e personagens políticos, ou pelo menos chamando a atenção para a materialização dos riscos ditada pela vizinhança entre estes partidos e o poder político.
Interrogo-me se este compromisso político não adultera a arte. Os puristas, que desligam a arte da política para que a primeira não seja contaminada pela segunda, confirmam a adulteração. Não se importam tanto com a evolução da conjuntura política, mesmo que aceitem os riscos da crescente popularidade de políticos e partidos de extrema-direita e de direita populista. A sua posição purista não transige com o lugar hermético que a arte deve ocupar. A arte não pode derrapar para a política, sob pena de se tornar manifestamente política numa colonização que resulta em perda para a arte. Os puristas admitem que os artistas sejam atores políticos; mas consideram que o lugar da arte não é o da política e que os artistas não estão impedidos de intervir politicamente, desde que não o façam através da arte que produzem.
Ao refletir sobre este assunto, as primeiras ideias coincidiram com a tese da separação entre arte e política. A tendência de a arte se tornar política como reação à tomada do poder pela direita populista ou pela extrema-direita (ou à possibilidade de o poder ser por elas capturado em eleições que estão para breve) motivou alguma perplexidade: nesta cumplicidade forçada entre arte e política, a corrente dominante denuncia as ameaças à democracia liberal com origem na direita populista e na extrema-direita. Os artistas posicionam-se na paisagem político-partidária, tornam-se atores políticos na primeira pessoa e manifestam uma preferência (ou melhor: um antagonismo). A sua arte transfigura-se em programa político, sendo uma arte de intervenção que rejeita uma proposta eleitoral a concurso e se arregimenta a favor de uma certa mundividência.
A afinidade ideológica compromete politicamente esta arte, que depressa se confunde com um manifesto político ou com uma arma a utilizar na campanha eleitoral. O panorama artístico torna-se assimétrico. Não é minha intenção desvalorizar as ameaças da direita populista e da extrema-direita à democracia liberal. Mas a assimetria no domínio das artes pode ser entendida como uma tomada de posição que é equivalente a uma intervenção política. Agora que tantos se insurgem contra pensamento único, este movimento artístico que propagandeia as desvirtudes de Trump, Bolsonaro, Órban, Meloni, Milei, Wilders, Ventura, etc. refugia-se numa epistemologia de sentido único.
Muito embora mantenha estas reservas, o amadurecimento das ideias levou-me a outro lugar. Não se pode proibir um artista de se posicionar politicamente, ainda que essa intervenção se socorra da arte. Não se pode impedir que um artista teça uma ponte entre a sua arte e a política; de outro modo, a sua liberdade fica hipotecada, o direito a ser ator político está em causa. Os artistas também são atores políticos; todas as pessoas são atores políticos, mesmo aquelas que repudiam a política e juram nada querer saber sobre política.
Tudo é político – e não é preciso aceitar a definição holística dos manuais de ciência política, em que tudo se oferece com uma dimensão política. A arte também pode ser política. Mesmo quando não é intencionalmente política. Não sou pela posição purista que exclui da arte a sua usurpação pela política. Se a vontade do artista é servir-se da arte para comunicar política, impedi-lo – ou desvalorizar uma manifestação de arte porque ela contém uma posição política – seria uma restrição à sua liberdade. Seria condená-lo a ser apenas artista sem poder exercer a sua condição política enquanto pessoa que encarna no artista.
A posição purista parte de um pressuposto errado: a infantilização do destinatário da obra de arte, possivelmente alguém que não é capaz de entender que uma obra de arte pode ser política sem que essa sua natureza condicione a capacidade de interpretar a obra de arte e de tomar decisões autónomas sobre os projetos políticos a concurso. Um artista tem o direito de se posicionar politicamente através da arte que produz. E isso não pode ser entendido como uma interferência do artista na vontade – e na decisão política – do seu público. Acreditar nesta possibilidade infantiliza o consumidor de arte, aviltando-o politicamente.
Não é compatível com o dogma da igualdade manter a ideia da supremacia intelectual dos artistas sobre os que consomem a sua arte. Se conseguem pensar pela sua cabeça quando contemplam a arte produzida, também têm livre arbítrio para tomar decisões políticas; têm lucidez para apreciar uma obra de arte enquanto tal e não se reverem na mensagem política associada a essa obra.
Sei precisar que o vento está a favor. As ideias vêm embebidas nessa vitamina. O plano inclinado conspira contra as ideias contrárias. Não me contento com a assimetria a meu favor. Prefiro que as armas terçadas sejam iguais. O vencimento de causa não é autêntico quando o vento está ardilosamente a favor. O vento torna-se paliativo, encarrega um disfarce que adultera a validade das ideias.
Conseguir entronizar um vencimento de causa por causa do vento que está a favor não pressente o mérito da demanda. Dir-se-á que a vantagem obtida com o vento a favor é que cimentou o privilégio. Não será uma proeza convincente, pairando a impressão que outro teria sido o resultado da demanda sem o vento a favor. O contra-argumento não demora: o vento sopra sempre a favor de alguém e contra outrem. Se hoje alguém tira partido do vento, amanhã poderá ser outrem. Haverá sempre alguém que se empossa na assimétrica vantagem pelo usufruto do vento a favor. Os acasos fazem parte da roda da vida.
Os outros, quando intuem a vantagem do vento, não deixam de ir a jogo. Aproveitam o privilégio, tornam-no um trunfo que trazem à manga mal pressintam que o vento cismou a favor. É da natureza aleatória das coisas que os acasos integrem a constelação de circunstâncias sopesadas, ora uma diatribe que condena ao malogro, ora um virar a mesa do avesso que transfigura danos em proveitos. Fugir do vento que vem de trás e ajuda o vencimento de uma causa é de uma candura que condena os ingénuos a sê-lo e a perderem uma oportunidade.
No desporto, quando o vento está a favor e a sua intensidade ultrapassa uma determinada métrica, os resultados só contam entre os pares da competição que teve lugar naquele dia. O desempenho não é avaliado no alçado comparativo: há recordes que não são validados porque o vento estava tanto a favor que o resultado não é genuíno. É aceitável: um recorde com a ajuda sobre-humana do vento não deve contar para o registo das coisas que contam para o domínio da humanidade.
O vento não cabe no escrutínio das coisas humanas. Mesmo quando está a favor.
Se pudesses escolher uma profissão, serias zelador de paisagens. De ti seriam requisitados serviços de proteção de paisagens, sabendo que tu conseguias repelir os indelicados conspiradores que provocam a dignidade das paisagens. De ti saberiam a diligência máxima de acautelar as paisagens; seria possível falar, com toda a propriedade, de paisagens protegidas (só então).
Serias o máximo guardador da força bruta de uma paisagem. Se promotores do progresso – essa condição desprezível da humanidade, rebaixada a uma sub-humanidade própria do vilipêndio – se propusessem a transfigurar uma paisagem, persegui-los-ias por atentados contra o estado próprio da natureza. De ti subiriam pelas paredes dos ministérios os dedos aspergidos pelo xisto bruto que se entranha nas paisagens de certos lugares. Os ministros e os seus lugares-tenentes temer-te-iam, não pela força bruta que conseguirias a teu favor arregimentar, caso fosse preciso: temer-te-iam pela voz autorizada e respeitada que fala fundo às pessoas que passaram a entender que não são as coisas materiais da vida que as enriquecem.
Serias tu, com a força telúrica com que te julgam, a guardar as chaves da paisagem para que ela não possa ser corrompida. Em itinerante residência, sem nunca se saber do teu paradeiro para não ficares à mercê dos salteadores avulsos que estão a soldo da adulteração da paisagem. Não que precisasses do segredo do paradeiro para prosseguires a tua demanda: a força telúrica seria provação dos que ousassem opor-se à tua embaixada.
Com o xisto agarrado às mãos, como se fosse o suor ateado pelos bons serviços, a tua fotografia oficial aformoseada por flores campestres que ensinam as cores ao arco-íris, as tuas palavras seriam como leis decretadas sem o beneplácito da ordem instituída. Correrias os lugares recônditos se a eles fosses chamado para extinguir a combustão do progresso. Dirias, ao povo seguidor, que não formam um séquito de ninguém – a menos que aceitassem sê-lo de uma paisagem embrutecida e delicadamente frágil.
Empossado guardião das paisagens agenciadas, dormirias por dentro dos sonhos com lugares bucolicamente sonhados em forma de geografia, com a gramática da natureza. E tu, resgatando os sonhos, deixarias para memória futura o lastro da paisagem indelével. O melhor rótulo da civilização.
De cada vez que alguém chamava pelo ano neófito, era a inflação que respondia em primeiro lugar. Tudo era inflação, sobretudo o que tivesse má caldeação (não tanto assim o que viesse abraçado ao exploratório do que é bom, com a teimosa insistência em responder com inércia). As pessoas tinham pressa de sepultar o ano decesso, convocando o ano neófito. As pessoas, esses entes estruturalmente conservadores, peticionavam o novo. Assim se aprendia a linhagem paradoxal da espécie humana.
Por muito que os procuradores da sensatez advertissem que o pressentimento do novo era contraintuitivo, as pessoas não se importavam. (Talvez não conseguissem entender o significado de contraintuitivo; houve quem recomendasse sinónimos, que a carestia semântica escapa à alçada do princípio geral da inflação.) Convenciam-se da inflação como se estivesse virada do avesso: a idade aumenta no cardinal, um efeito idêntico ao da inflação. Tal como na inflação, que quase nunca é acompanhada pelos salários (e assim as pessoas perdem rendimento), o aumento da idade não perfuma um aumento de capacidades das pessoas. É o contrário: a inflação etária corresponde a uma deflação de capacidades.
Eta propensão é contraproducente, um fenómeno semelhante ao avinagrar de um molho. Se o vinagre for acrescentado em medida módica, presta-se à quimera dos elementos que se misturam num cozinhado; o preparado oculta o travo avinagrado. Mas se o vinagre cair em abundante precipitação no cozinhado, este perde atributos e fica intragável. Os que querem apressar o tempo são como os desastrados aprendizes de cozinha que acabam de estragar um cozinhado por vinagre em excesso.
Encontram-se personagens que carregam no mosto da idade, uns por terem desistido de mover freios ao envelhecimento, outros porque estão convencidos que a pose senatorial, condizente com a gravidade da velhice, consegue privilégios. Montam na cela do tempo e invetivam-no com as esporas pontiagudas a percutirem a sua carne frágil. Ficam à espera que o tempo se apresse. Avinagram, enquanto esperam. Se não forem a tempo do tempo, acordam para a sua própria prescrição.
Não precisamos de um testamento do passado. Por mais que as interpelações exteriores exijam tomadas de posição: um imperativo da responsabilidade de que somos devedores, a silhueta da solidariedade como moldura do compasso moral. Mas a voz interior está muda fora do eu.
Pergunta-se: “a que “ismo” pertences? Qual é a tua fação”? É um diálogo de surdos. A mudez é cautelar: que não seja recusada a prerrogativa da discrição, a emulsão que cicatriza uma pertença que exige adesão comprometida e despojamento do eu. O egoísmo não é sempre mau. É melhor do que as condutas imperativas que se abraçam à afirmação de um pensar coletivo. O sentir coletivo não é a soma das vontades individuais. É uma tirania disfarçada de nobres propósitos.
Os braços atirados a favor de uma militância constituem o mínimo denominador comum de ação, a prova de vida do ser social. As causas são inventariadas. Por restrição criteriosa, fica à margem de todas elas. O misantropo oferece um exemplo contra si mesmo: a igualdade. A desigualdade sistemática é o segredo mal escondido que trava a miragem da igualdade. A menos que se continue a contar moinhos de vento e a assombrar a angústia dos fiascos que regressam com a repetição insistente da História.
A liberdade de ser humano não se concilia com a liberdade do ser humano. O prolífico calendário de deveres esvazia a autonomia do ser social. Não se faz um acerto de contas com os erros do passado. Perpetuam-se, agravando a sua escala. O futuro continua a ser o cofre que reserva a esperança. Qual é a serventia da História? Não se use a História como ensinamento que desembaraça o futuro. Os olhares criteriosos destinam à História um destino trágico: já ninguém pode confiar na esperança. A História engrossa o cansaço da esperança.
Somos uma espécie disfuncional. Não sabemos da existência de ervas secas quando a neve do Inverno ocupa a paisagem. Olhamos para trás, para essa invernia. Sentimos a dureza inerente. Arregimentamos as melhores forças para deixarmos o apeadeiro do Inverno. Não vamos a tempo de corrigir as suas sequelas. Secas, as ervas: no desacerto das vidas que se exaurem por dentro, coagidas a serem testemunhas de vidas outras, uma telúrica impossibilidade que não é caução do deslumbramento da existência.
Alados no vértice de um “caostémico”, viver é a máxima aspiração: um mínimo denominador que se transfigura num máximo propósito. Sem exalçar as munições da exaltação, que as proezas são contadas por excesso.
Podia dizer que era estúpido, mas teimava em ser a exceção ao princípio geral do envelhecimento. Era uma recusa metódica, que continha em si a criteriosa demanda pela perenidade possível. Aprendeu, desde cedo, que a morte é vizinha. Entre familiares, amigos e a página da necrologia que não conseguia deixar de visitar de través, soube que as pessoas não duram para sempre, desde novo.
Com o tempo a passar, a madurez não crescia a compasso. A cada ano inaugurado jurava ter menos um ano na certidão de nascimento. Não era um ano que emagrecia a vida restante; era um ano a menos na contabilidade etária, mentindo intencionalmente como se a mentira fosse o sortilégio que atestava o retardamento da velhice. Fintava o tempo. Fintava a idade. Fazia de propósito: mentir ao tempo era como deixar que o tempo jogasse com uma mentira a seu favor.
Podia ser uma mentira piedosa. Não lhe tirava o sono. A vida, as vidas, atravessam palcos trespassados pela mentira. A mentira disfarçada de verdade, sem que se dê conta da sua adulteração; ou a mentira intencional, porque necessária, para enfeitiçar os deuses das convenções e traí-los na sua austera mão sacrificial. Não eram as folhas do calendário pretéritas que se sublevavam na matéria fundamentada do medo. Era o cheiro a futuro, o pressentimento de que o tempo será esquecimento quando decidir. A morte vem com o medo do futuro.
O medo da velhice estava estampado nas cicatrizes da pele que não têm o nome de cicatrizes. Nos cabelos grisalhos que colonizavam lugar de cada vez que comparava fotografias de tempos diferentes. No corpo que se cansava mais depressa. Na memória que às vezes não respondia e que outras fraquejava. Olhava para os mais velhos que pareciam residentes em funerais dos seus mais próximos para saber se não se perguntavam se o próximo funeral não seria o deles. Num momento de suada clarividência (ou de fingimento otimista), pôs a hipótese de os funerais serem o tirocínio para a morte – e de como os velhos se desassustavam da morte, convencendo-se que dela não podem fugir.
Os velhos – já o ensinavam os clássicos – ganham lucidez com a idade. Não precisam de se embustear. Não precisam de fingir uma idade que não têm. Sabem que estão destinados à morte, como todos os outros que terão de esperar ainda mais tempo. Tomam o tempo como o esquadro que os separa desse destino infalível. Ele fingia que o tempo crescia à medida que avançava. Com a corda toda, no mais puro fingimento.