8.1.24

A arte pode ser politicamente comprometida?

Radiohead, “House of Cards” (From the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=aCo61HPAhPs

A tendência que recorta a subida da direita populista e da extrema-direita tem motivado manifestações artísticas politicamente comprometidas. Esses artistas aproveitam a arte para comunicarem política, opondo-se àqueles movimentos e personagens políticos, ou pelo menos chamando a atenção para a materialização dos riscos ditada pela vizinhança entre estes partidos e o poder político. 

Interrogo-me se este compromisso político não adultera a arte. Os puristas, que desligam a arte da política para que a primeira não seja contaminada pela segunda, confirmam a adulteração. Não se importam tanto com a evolução da conjuntura política, mesmo que aceitem os riscos da crescente popularidade de políticos e partidos de extrema-direita e de direita populista. A sua posição purista não transige com o lugar hermético que a arte deve ocupar. A arte não pode derrapar para a política, sob pena de se tornar manifestamente política numa colonização que resulta em perda para a arte. Os puristas admitem que os artistas sejam atores políticos; mas consideram que o lugar da arte não é o da política e que os artistas não estão impedidos de intervir politicamente, desde que não o façam através da arte que produzem.

Ao refletir sobre este assunto, as primeiras ideias coincidiram com a tese da separação entre arte e política. A tendência de a arte se tornar política como reação à tomada do poder pela direita populista ou pela extrema-direita (ou à possibilidade de o poder ser por elas capturado em eleições que estão para breve) motivou alguma perplexidade: nesta cumplicidade forçada entre arte e política, a corrente dominante denuncia as ameaças à democracia liberal com origem na direita populista e na extrema-direita. Os artistas posicionam-se na paisagem político-partidária, tornam-se atores políticos na primeira pessoa e manifestam uma preferência (ou melhor: um antagonismo). A sua arte transfigura-se em programa político, sendo uma arte de intervenção que rejeita uma proposta eleitoral a concurso e se arregimenta a favor de uma certa mundividência.

A afinidade ideológica compromete politicamente esta arte, que depressa se confunde com um manifesto político ou com uma arma a utilizar na campanha eleitoral. O panorama artístico torna-se assimétrico. Não é minha intenção desvalorizar as ameaças da direita populista e da extrema-direita à democracia liberal. Mas a assimetria no domínio das artes pode ser entendida como uma tomada de posição que é equivalente a uma intervenção política. Agora que tantos se insurgem contra pensamento único, este movimento artístico que propagandeia as desvirtudes de Trump, Bolsonaro, Órban, Meloni, Milei, Wilders, Ventura, etc. refugia-se numa epistemologia de sentido único.

Muito embora mantenha estas reservas, o amadurecimento das ideias levou-me a outro lugar. Não se pode proibir um artista de se posicionar politicamente, ainda que essa intervenção se socorra da arte. Não se pode impedir que um artista teça uma ponte entre a sua arte e a política; de outro modo, a sua liberdade fica hipotecada, o direito a ser ator político está em causa. Os artistas também são atores políticos; todas as pessoas são atores políticos, mesmo aquelas que repudiam a política e juram nada querer saber sobre política. 

Tudo é político – e não é preciso aceitar a definição holística dos manuais de ciência política, em que tudo se oferece com uma dimensão política. A arte também pode ser política. Mesmo quando não é intencionalmente política. Não sou pela posição purista que exclui da arte a sua usurpação pela política. Se a vontade do artista é servir-se da arte para comunicar política, impedi-lo – ou desvalorizar uma manifestação de arte porque ela contém uma posição política – seria uma restrição à sua liberdade. Seria condená-lo a ser apenas artista sem poder exercer a sua condição política enquanto pessoa que encarna no artista. 

A posição purista parte de um pressuposto errado: a infantilização do destinatário da obra de arte, possivelmente alguém que não é capaz de entender que uma obra de arte pode ser política sem que essa sua natureza condicione a capacidade de interpretar a obra de arte e de tomar decisões autónomas sobre os projetos políticos a concurso. Um artista tem o direito de se posicionar politicamente através da arte que produz. E isso não pode ser entendido como uma interferência do artista na vontade – e na decisão política – do seu público. Acreditar nesta possibilidade infantiliza o consumidor de arte, aviltando-o politicamente. 

Não é compatível com o dogma da igualdade manter a ideia da supremacia intelectual dos artistas sobre os que consomem a sua arte. Se conseguem pensar pela sua cabeça quando contemplam a arte produzida, também têm livre arbítrio para tomar decisões políticas; têm lucidez para apreciar uma obra de arte enquanto tal e não se reverem na mensagem política associada a essa obra.

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