Idles, “Gift Horse”, in https://www.youtube.com/watch?v=_HQrM5L9T1g
Qual era a identidade dos fantasmas que ameaçavam com as suas enormes bocas abertas, como se quisessem abocanhar as vítimas? Pouco interessava, se fosse mantida a ideia de que os fantasmas não são tangíveis. Ainda assim, prometeu que ia “dormir sobre o assunto” (como o povo costuma proclamar, com a pose solene de quem transpira erudição e perícia técnica). Mas ninguém perguntou ao assunto se se importava. Não dependia só do peso de quem fosse dormir sobre ele. Não é a mesma coisa arcar com o peso de um sono de sessenta quilos e de outro de noventa e cinco. O assunto podia não sobreviver ao peso demorado de um sono agitado de noventa e cinco quilos. O efeito do esmagamento era fatal. Ao acordar, o agora estremunhado corpo de noventa e cinco quilos encontrou o cadáver do assunto sobre o qual dormiu. Sobressaltado, o corpo de noventa e cinco quilos correu em auxílio do código penal para descobrir o crime que cometeu. Quando regressou ao quarto, o assunto tinha desaparecido da almofada. Revistou a casa toda. Do paradeiro do assunto defunto, nada. As janelas estavam fechadas, ele não podia ter fugido. Aliás, o assunto estava morto, não podia ir a lugar algum (pensou: “ponto final”, para se desembaraçar dos equívocos que começavam a embaciar o pensamento). De repente, acalmou-se. A prova do assassínio do assunto tinha desaparecido. Talvez um assunto morto se extinga depressa, incluindo as provas físicas da sua existência. Um assunto morto deixa de ser um assunto (“essa é a verdade”, disse, noutro assomo de erudição popular). Ontem deitou-se sobre o assunto para, dormindo sobre ele, pedir ajuda a Hipnos (depois de desmascarado Morfeu, que não é o legítimo deus do sono). Agora que o assunto estava morto, desapareceu a pendência. O dia não precisava de ser plangente.
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