1.1.24

A corda toda

The Blaze, “Lonely”, in https://www.youtube.com/watch?v=UrzbJsJN538

Podia dizer que era estúpido, mas teimava em ser a exceção ao princípio geral do envelhecimento. Era uma recusa metódica, que continha em si a criteriosa demanda pela perenidade possível. Aprendeu, desde cedo, que a morte é vizinha. Entre familiares, amigos e a página da necrologia que não conseguia deixar de visitar de través, soube que as pessoas não duram para sempre, desde novo. 

Com o tempo a passar, a madurez não crescia a compasso. A cada ano inaugurado jurava ter menos um ano na certidão de nascimento. Não era um ano que emagrecia a vida restante; era um ano a menos na contabilidade etária, mentindo intencionalmente como se a mentira fosse o sortilégio que atestava o retardamento da velhice. Fintava o tempo. Fintava a idade. Fazia de propósito: mentir ao tempo era como deixar que o tempo jogasse com uma mentira a seu favor.

Podia ser uma mentira piedosa. Não lhe tirava o sono. A vida, as vidas, atravessam palcos trespassados pela mentira. A mentira disfarçada de verdade, sem que se dê conta da sua adulteração; ou a mentira intencional, porque necessária, para enfeitiçar os deuses das convenções e traí-los na sua austera mão sacrificial. Não eram as folhas do calendário pretéritas que se sublevavam na matéria fundamentada do medo. Era o cheiro a futuro, o pressentimento de que o tempo será esquecimento quando decidir. A morte vem com o medo do futuro.

O medo da velhice estava estampado nas cicatrizes da pele que não têm o nome de cicatrizes. Nos cabelos grisalhos que colonizavam lugar de cada vez que comparava fotografias de tempos diferentes. No corpo que se cansava mais depressa. Na memória que às vezes não respondia e que outras fraquejava. Olhava para os mais velhos que pareciam residentes em funerais dos seus mais próximos para saber se não se perguntavam se o próximo funeral não seria o deles. Num momento de suada clarividência (ou de fingimento otimista), pôs a hipótese de os funerais serem o tirocínio para a morte – e de como os velhos se desassustavam da morte, convencendo-se que dela não podem fugir.

Os velhos – já o ensinavam os clássicos – ganham lucidez com a idade. Não precisam de se embustear. Não precisam de fingir uma idade que não têm. Sabem que estão destinados à morte, como todos os outros que terão de esperar ainda mais tempo. Tomam o tempo como o esquadro que os separa desse destino infalível. Ele fingia que o tempo crescia à medida que avançava. Com a corda toda, no mais puro fingimento.

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