Deftones, “Be Quiet and Drive”, in https://www.youtube.com/watch?v=0BXpLiFupg8
No bojo da paciência, o pândita atravessava a estepe. Prometera que ia até Calcutá. Não perguntassem “porquê Calcutá”, a escolha foi ao acaso. Atravessava a estepe quando uns tímidos flocos de neve começaram a precipitar sobre o cabelo hirsuto. Não tinha frio. Se a neve fosse uma providência, começava a beber epifanias. Pelo que sabia, a neve naquela estepe começava a colonizar a paisagem um pouco mais tarde. Nunca se sabe, com o clima maluco – puxou lustro à propensão inadiável para marear os lugares-comuns.
Tão depressa precipitaram como tão depressa se extinguiram, os flocos de neve. A estepe continuava a exibir a mesma paisagem ocre, despida de árvores, as longas planícies encadeadas, sem se saber onde uma termina e começa a sua sucessora. Nenhum vestígio da neve timorata que caíra antes.
O pândita lembrou-se da estepe mongol quando já estava em Calcutá. Era o episódio mais vívido da viagem até Calcutá. Parecia ter sido acometido por uma amnésia localizada que impedia de tirar da memória fragmentos da viagem. Parecia impossível: tanta distância percorrida, tantas e diferentes paisagens atravessadas, tantos idiomas falados por pessoas tão desiguais, e só se lembrava da estepe por causa da neve repentina que caiu durante uns instantes.
Talvez porque em Calcutá estava um calor insuportável, alimentado por uma humidade que fundia os corpos com as roupas. Estaria a lembrança a ser invadida por um episódio de frio que, todavia, na altura não considerou um incómodo. Não era a razão plausível. Passara por outros lugares reivindicados pela invernia, com neve até aos joelhos e temperaturas de fazer congelar as extremidades do bigode.
E agora, que estava em casa e se recordava como em Calcutá evocou a neve breve na estepe mongol, irradiava outra pergunta: por que somos reféns das memórias – ou de como são as memórias que ditam o andamento dos dias que passam, uma distração do presente que o presente não perdoa.
Encantado com a luminescência da cidade deitada sobre o rio em socalcos sem métrica, uma luminosidade quimérica que recompõe os eternamente desgostados com o Inverno, comparou-a com a constante neblina que embaciava os olhares em Calcutá. E disse: quem dera Calcutá. Para ditar, em livro de atas, que os lugares outrora demandados são apetecidos. Como metáfora da perene insatisfação que não é um embaraço. É desta insatisfação que medram as oportunidades, trespassando a indolência que condena à desilusão.
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