15.1.24

À revelia

Desert Sessions featuring PJ Harvey and Josh Home, “Crawl Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=QfWAipcQ__0

A adoração pelo vinho ia ao ponto de se interrogar se seria terapêutico o mergulho num tonel com vinho. Nem ocorreram os perigos que corria se o fizesse, pois não é crível que o efeito prolongado da imersão em vinho seja diferente da imersão em água (no que ao engelhamento da pele diz respeito), ao que se somariam os efeitos deletérios da fermentação. A confirmar-se que a fermentação estava no auge, talvez fosse o ato terminal da sua vida se a lucidez entretanto omissa o atirasse para os braços tentaculares do tonel repleto de matéria vínica.

Nas juras que alinhava na métrica do tempo, não havia muitas que reconhecesse. Chamar-lhe-iam mentiroso, e seria difícil livrar-se da intenção mitómana se, contra a sua palavra, se jogasse a palavra plural das testemunhas. Seriam testemunhas desabonatórias. Só que ele não andava a arregimentar testemunhas que o abonassem. Já ultrapassara essa fase: deixou de viver para a sindicância dos outros. Da mesma forma que dedicava uma olímpica indiferença aos outros, esta era a petição que lhes dirigia: que lhe dedicassem a mesma, olímpica, indiferença. Os empates técnicos são a fonte da igualdade.

Julgá-lo-iam à revelia. Era sabido que não se submetia à sindicância alheia. Os outros não estavam na disposição de deixar passar em branco a sistemática mentira, tantas as juras com a curadoria de outras pessoas (os seus fieis depositários) que ele desmentia terem tido História. Os habituais tutores dos bons costumes decidiram que o descontrato das juras tinha de ser punido. Era preciso reiterar o exemplo: se não fosse sancionado, muitos outros teriam o incentivo para mentirem às suas juras. A jura tinha de ser uma denominação de origem protegida. 

A audiência foi marcada. Na véspera, a noite fora de boémia. Não foi de propósito – ele há sempre atestados médicos, um familiar que deixou de pertencer aos vivos, ou qualquer outro pretexto, desde que convincente, para que alguém se exima às responsabilidades agendadas. Não foi intencional: isto é, não marcou encontro com a boémia extravagante para se esquecer da audiência. Esqueceu-se, foi só isso. A indiferença ajudou ao esquecimento: quando foi notificado, deu tanta importância que, ato contínuo, destinou a notificação ao lixo (irrecuperável).

Foi à revelia que os juízes que capitalizam a moralidade o julgaram. Ele sonhava com um mergulho terapêutico num tonel com afamado vinho tinto. A boémia prosseguia por outros meios.

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