The Cure, “Plainsong” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xpL_TF_GPng
Na cidade onde os cidadãos são reciprocidade, há quem corteje assimetrias. Há quem apareça na pose de panfletário, vestindo a samarra da moralidade – e samarra porque, protegendo a moralidade de embargos, a mantém intacta, junto à pele. Pessoas num patamar superior proclamam palavras graves e esbracejam fantasmas caso a turba, que precisa do seu aconselhamento, não preste atenção aos diligentes avisos. Às vezes, quando a turba não faz o favor aos senadores da moralidade, estes pioram o estado de coisas enviando uma mensagem ao destinatário: “eu avisei, em bem avisei.” Como se, do próximo ensejo, fosse irrecusável o dever de seguir a advertência gratuita dos druidas políticos.
Em antevésperas de eleições, as personagens que conseguem arrematar atenção pública ostentam esta pose paternalista. Os protagonistas, por efeito de escala ou por estarem convencidos que são imprescindíveis, jogam a cartada do voto útil. Quem assim procede está a mostrar que o voto que se dispersa em concorrentes de segunda ou terceira igualha é um desperdício. É um voto inútil. A expressão “voto inútil” não lhes sobe à boca. Mas sabemos ler nas entrelinhas. Ao quererem desviar o voto dos candidatos que não aspiram a vencer, que mal conseguem eleger deputados, os maiorais usam a arma retórica do voto inútil. Quem esbraceja o imperativo voto útil reconhece, sem o afirmar por palavras ditas ou escritas, que votos dispersos nos outros são votos inúteis.
É pena que ninguém se tenha lembrado de um código de conduta eleitoral. Para balizar o legítimo e o ilegítimo em campanha. Para punir os que quebrassem as regras desse código. Para evitar que os eleitores, os que não têm informação suficiente para decifrarem o que é um logro, não sejam sequestrados pela retórica ardilosa de concorrentes à eleição. Para que os cidadãos não se exponham a vieses causados pelos ardis dos candidatos. Para que os eleitores pudessem ter meios de decifrar os ardis. Desse modo, podiam recorrer ao voto (erradamente considerado) inútil, nem que fosse como penalização dos que invocam o imperativo categórico do voto útil.
É possível que numa sociedade mal formada e com pouca informação descodificada, o grito lancinante do voto útil compense. O esbracejar de fantasmas desata o nó górdio do voto útil, falsificando a análise servida ao eleitor: votem útil, ou ponham-se a jeito do deserto nuclear, o novo sinónimo de instabilidade. Esta convocatória tem sangue totalitário: ou nós, ou o caos; e como o cidadão comum tem um medo atroz do caos – outra prova da sua fidelidade canina aos personagens com visibilidade pública, em quem, por inação, depositam o poder de serem os seus porta-vozes – sucumbe ao apocalipse prometido pelo voto inútil.
Este é um apelo totalitário, porque distorce intencionalmente as bases das decisões de muitos cidadãos; e é totalitário porque sela a inutilidade dos outros sem condições para serem protagonistas. Apetece perguntar: e por que não se resume a dois o concurso eleitoral? Por que não se proíbem os outros concorrentes, os que não podem ganhar? (E, ato contínuo, perguntem se isso é democrático.)
Oxalá haja muitos eleitores que sabem pensar pela sua cabeça, sem aceitarem a mediação de uns iluminados que monopolizam o espaço público. E que esses eleitores exibam o mau feitio próprio de quem age contrariando as sugestões enviesadas, gratuitas mas pesadamente interesseiras, dos sacerdotes do voto útil. Para atomizar o espaço público com uma miríade de concorrentes e lançar a semente do terrífico caos.
Ao menos, esses saberão honrar a autonomia de pensamento e não capitulam perante as falácias dos superiores. Para poderem dizer, com a voz hercúlea e bem sublinhada: inútil é o voto útil.
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