The Smile, “Friend of a Friend”, in https://www.youtube.com/watch?v=yx75oOxpQaY
Pelos poros do xisto, as palavras entarameladas. Vozes guturais como que subindo às paredes, em pose alpinista. Os corpos sem arnês. Desobedientes. Talvez irresponsáveis, ou apenas intencionalmente negligentes.
A manhã testemunha levanta-se, estremunhada. É preciso tirar do dia a sua aura, fazer dele um festim. Como se o dia tivesse cio e fosse pródigo. Um dia cantante, os pássaros efémeros levantando voo e deixando o chilrear discreto como som de fundo. As horas moventes são a folha de papel onde se adicionam as palavras por acaso. Espaçadas pelo rasurado ideal de quem não se satisfaz com a forma original.
Do miradouro, um olhar de atalaia. Inquisidor. Desfila sobre a paisagem que se estende em socalcos mal definidos. E interrogações: como seria aquele chão primitivo, antes de ter sido colonizado pelos antepassados? Quantas alegrias, e quanto sofrimento, foi aquele chão transfigurado em cidade testemunha? A cidade não mostra as rugas quando o olhar-atalaia a sonda ao longe. É um disfarce – ou apenas a circunstância do olhar distanciado que se confunde com uma penumbra a destempo. Os miradouros vigiam-se a partir das diferentes trincheiras em que se situam.
A matéria válida incendeia a página dantes branca com um amontoado de palavras e de rasuras. As rasuras são a honestidade das escolhas que se sobrepõem umas às outras. São cicatrizes do pensamento que se desdobra em múltiplas camadas, um vestígio da insatisfação interior que se abate como exigência interna. Encontra um parágrafo que foi todo rasurado: um arrependimento, e dos grandes, para ditar a abolição de um parágrafo inteiro. Mas também parágrafos inteiros sem uma rasura. Ficou por determinar se foi por distração ou um desvio de empenho.
No fim do exercício, o olhar inquisidor desafia outra avaliação: é preciso passar o texto a limpo? Tantas as rasuras, intercaladas por manchas de texto sem uma rasura, tornam legítima a demanda. As rasuras não podem ficar escondidas. É o preço da honestidade desarmante. As cicatrizes que o texto deixou à medida que foi deixando os alicerces para se aproximar de um estado final. Todavia inacabado.
O olhar desafiante, interiormente desafiante, diria ser a tutela de outras rasuras se não tivesse ficado determinado, pelo livre arbítrio do tutor, que aquela era a sua forma definitiva. À prova de rasuras mais.
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