4.1.24

O xisto agarrado às mãos

The Breeders, “Saints”, in https://www.youtube.com/watch?v=29DKkmZMTlk

Se pudesses escolher uma profissão, serias zelador de paisagens. De ti seriam requisitados serviços de proteção de paisagens, sabendo que tu conseguias repelir os indelicados conspiradores que provocam a dignidade das paisagens. De ti saberiam a diligência máxima de acautelar as paisagens; seria possível falar, com toda a propriedade, de paisagens protegidas (só então). 

Serias o máximo guardador da força bruta de uma paisagem. Se promotores do progresso – essa condição desprezível da humanidade, rebaixada a uma sub-humanidade própria do vilipêndio – se propusessem a transfigurar uma paisagem, persegui-los-ias por atentados contra o estado próprio da natureza. De ti subiriam pelas paredes dos ministérios os dedos aspergidos pelo xisto bruto que se entranha nas paisagens de certos lugares. Os ministros e os seus lugares-tenentes temer-te-iam, não pela força bruta que conseguirias a teu favor arregimentar, caso fosse preciso: temer-te-iam pela voz autorizada e respeitada que fala fundo às pessoas que passaram a entender que não são as coisas materiais da vida que as enriquecem.

Serias tu, com a força telúrica com que te julgam, a guardar as chaves da paisagem para que ela não possa ser corrompida. Em itinerante residência, sem nunca se saber do teu paradeiro para não ficares à mercê dos salteadores avulsos que estão a soldo da adulteração da paisagem. Não que precisasses do segredo do paradeiro para prosseguires a tua demanda: a força telúrica seria provação dos que ousassem opor-se à tua embaixada.

Com o xisto agarrado às mãos, como se fosse o suor ateado pelos bons serviços, a tua fotografia oficial aformoseada por flores campestres que ensinam as cores ao arco-íris, as tuas palavras seriam como leis decretadas sem o beneplácito da ordem instituída. Correrias os lugares recônditos se a eles fosses chamado para extinguir a combustão do progresso. Dirias, ao povo seguidor, que não formam um séquito de ninguém – a menos que aceitassem sê-lo de uma paisagem embrutecida e delicadamente frágil.

Empossado guardião das paisagens agenciadas, dormirias por dentro dos sonhos com lugares bucolicamente sonhados em forma de geografia, com a gramática da natureza. E tu, resgatando os sonhos, deixarias para memória futura o lastro da paisagem indelével. O melhor rótulo da civilização.

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