24.1.24

De cor

Frank Carter & the Rattlesnakes, “Devil Inside Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=sULFSTznJKM

Não preciso de provas sobre a pele que navega entre os meus dedos. Digo: podia fazer dela um mapa – e mais digo que a probabilidade de erro seria insignificante. Podia sindicar essa pele de olhos fechados que o mapa seria de uma inteireza que faria corar de vergonha os cartógrafos profissionais. Pois a pele que navega entre os dedos é o meu salvo-conduto, o braille necessário se me fizesse passar por cego.

Mas mesmo que fingisse a cegueira seguiria de cor a cor da pele que transita nas minhas mãos. Habilito-a com a quimera que está por cima das aspirações insondáveis. Desenho na pele a cor da minha voz, as palavras ecoando em sítios avulsos, onde calha deixá-las como tatuagens que não adulteram a pele. E tu sabes: não quero a minha assinatura para nada, se não para a outorgar como prova de mim na pele sumptuosa de que me fizeste tutor. Para nos dispensarmos de códigos de conduta.

Desse outorga não ficaram testemunhos que façam prova. Não precisamos das provas documentadas. As memórias hasteiam-se no dorso do tempo com as palavras que deixamos na almofada, no suor que amadurece as paredes, nas alvoradas que conhecemos antes dos outros. Não deixamos as memórias para ninguém. São nossas, a antítese do património da humanidade. 

Se fosse preciso, fazia legendas ao desenhar o mapa da tua pele. Seriam formas tentadas de poesia, talvez; um catálogo de intenções; o ecoar de memórias que se perpetuam nas avenidas dançadas na tua pele fortaleza; um sortilégio que destrona tempestades, congraçando angústias que pudessem ser apalavradas a destempo. De cor, as cores todas que vertemos para além do arco-íris, pois o nosso vocabulário, a gramática de um amor inteiro, não cabe na exiguidade das cores. Nem por tantas serem são um obstáculo à codificação da tua pele, que desenho de cor imerso no desjeito para o desenho.

Olhamos o rio que esculpe o caudal, um fino fio de água que esconde a sua grandeza à escala 1:1. Desde o miradouro, dir-nos-íamos tutores do demais. Não queremos essa atalaia. Apenas exaltamos uma paisagem mirífica, como se nela encontrássemos inspiração para as estrofes que simbolizam o mapa da tua pele, feito de cor, os olhos propositadamente vendados, o medo de errar desterrado para algures. Somos apenas a colossal página de um amor singular.

Deixamos que o vento espie as arestas dos nossos rostos. O vento agressor não descompõe o sortilégio da paisagem. Não adultera o mapa da tua pele. Os meus dedos param o vento e o teu rosto fica protegido contra o tempo derrisório. 

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