2.1.24

É misantropia, mas aguenta-se

Faith No More, “A Small Victory”, in https://www.youtube.com/watch?v=i9_hCjcFNO0

“A História é o cansaço da esperança” 

(filme “As Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan)

Não precisamos de um testamento do passado. Por mais que as interpelações exteriores exijam tomadas de posição: um imperativo da responsabilidade de que somos devedores, a silhueta da solidariedade como moldura do compasso moral. Mas a voz interior está muda fora do eu. 

Pergunta-se: “a que “ismo” pertences? Qual é a tua fação”? É um diálogo de surdos. A mudez é cautelar: que não seja recusada a prerrogativa da discrição, a emulsão que cicatriza uma pertença que exige adesão comprometida e despojamento do eu. O egoísmo não é sempre mau. É melhor do que as condutas imperativas que se abraçam à afirmação de um pensar coletivo. O sentir coletivo não é a soma das vontades individuais. É uma tirania disfarçada de nobres propósitos. 

Os braços atirados a favor de uma militância constituem o mínimo denominador comum de ação, a prova de vida do ser social. As causas são inventariadas. Por restrição criteriosa, fica à margem de todas elas. O misantropo oferece um exemplo contra si mesmo: a igualdade. A desigualdade sistemática é o segredo mal escondido que trava a miragem da igualdade. A menos que se continue a contar moinhos de vento e a assombrar a angústia dos fiascos que regressam com a repetição insistente da História.

A liberdade de ser humano não se concilia com a liberdade do ser humano. O prolífico calendário de deveres esvazia a autonomia do ser social. Não se faz um acerto de contas com os erros do passado. Perpetuam-se, agravando a sua escala. O futuro continua a ser o cofre que reserva a esperança. Qual é a serventia da História? Não se use a História como ensinamento que desembaraça o futuro. Os olhares criteriosos destinam à História um destino trágico: já ninguém pode confiar na esperança. A História engrossa o cansaço da esperança.

Somos uma espécie disfuncional. Não sabemos da existência de ervas secas quando a neve do Inverno ocupa a paisagem. Olhamos para trás, para essa invernia. Sentimos a dureza inerente. Arregimentamos as melhores forças para deixarmos o apeadeiro do Inverno. Não vamos a tempo de corrigir as suas sequelas. Secas, as ervas: no desacerto das vidas que se exaurem por dentro, coagidas a serem testemunhas de vidas outras, uma telúrica impossibilidade que não é caução do deslumbramento da existência. 

Alados no vértice de um “caostémico”, viver é a máxima aspiração: um mínimo denominador que se transfigura num máximo propósito. Sem exalçar as munições da exaltação, que as proezas são contadas por excesso.

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