26.1.24

O que é um problema?

David Sylvian, “I Surrender”, in https://www.youtube.com/watch?v=OTX8XeLTogI

1.

Parecia que a vida era o negativo de uma fotografia. Ele próprio, ciente da irrelevância metódica a que se dedicara, sentia-se a película negativa de uma fotografia. As mãos pousavam sobre a chávena e o avesso tornava-se o substantivo forte: a chávena, plúmbea, desfocada; os restos do café, no fundo da chávena, a revelarem a existência de café albino.

2.

As palavras escritas na folha gasta não ficavam inteiras. A folha estava na horizontal, perpendicular ao tampo da mesa. As palavras escorregavam pela página como se tivessem alergia. Assim que encontravam o exílio, ninguém conseguia dar conta do seu paradeiro. Furtivas, arremetiam contra a página – deixavam-na vazia, o seu estado original. Talvez por não gostarem de objetos arcaicos, as palavras ambiciosamente devolviam à procedência os atavismos. As palavras, solícitas, insurgiam-se contra as prescrições. Não sabia se eram as palavras a ganhar vida própria (uma possível farsa), ou se era a metáfora de si mesmo.

3.

À chegada ao café, estava o habitual rapaz que ajuda a estacionar os carros em troca da generosidade dos condutores. Já não ia àquele lugar há uns meses. O rapaz, que nunca tivera bons ares, estava um andrajo (a maldita droga que, enquanto for droga e por isso vetada pelos bons costumes, continuará a levar para a sepultura gente de mais, nova de mais). Emaciado, flagrantemente emagrecido, as mãos corrompidas pela sujidade tatuada na pele, arrastando-se à espera de generosidade. O seu pecúlio não devia ser demorado. As leis que encenam proibições em barda deviam ser julgadas por crimes contra a humanidade. Elas e os seus feitores.

4.

Na esquina, um cartaz publicitário anuncia o concerto de um músico geronte. A sua fotografia está em grande plano. O músico continua a exibir a cabeleira que sempre foi cartão de visita, disfarçando; a pele enrugada não engana (apesar dos nítidos retoques de fotógrafo amador). É como se a fotografia tivesse um pano de fundo embaciado e os lugares mais perto do palco habitassem um logro. Todos precisam de réditos que cuidem do seu sustento. Até os que já cheiram o acidulado projeto da reforma. Maldito capitalismo.

5.

Na grande cidade, os mendigos combinaram e fazem-se acompanhar de um animal de companhia na mendicidade (um cão, um gato, um coelho). Usam as armas que podem. Jogam com a sensibilidade das pessoas que seriam insensíveis à esmola se os mendigos não estivessem acompanhados de animais de companhia. Dão esmola mais depressa pelo cão, ou o gato, ou o coelho que faz parelha com o pedinte. Não se diga, a despropósito, que é o espelho da desumanização. 

6.

Há dias leu num jornal que quase 20% das pessoas vivem sozinhas. Ele tem medo da solidão. Muito embora goste de estar duradouras horas sozinho. Mas isso não é o refrão da solidão que condena os solitários. É uma dor que tem pelos outros que estão reféns da solidão. Se pudesse ser legislador por um dia, assinava um decreto que proibisse a solidão. Aos 20% que estão sozinhos haveria de se arranjar uma companhia, para deleite do Estado paternalista que ainda não se lembrou de tal. Num ápice, desmentiu o liberalismo que encarna. Um observador diligente descasa-se da teoria quando esta castra a sua sensibilidade.

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