19.1.24

Os baixos não precisam de escadote (mas houve um primeiro-ministro francês que disfarçava com tacões altos)

David Byrne, “Burning Down the House” (live at Coachella), in https://www.youtube.com/watch?v=_uQOZtkgM24

Diz-se, em mal disfarçada confidência, que os baixos precisam de escadote para verem as coisas – e o escadote é o equivalente aos binóculos que ampliam a realidade para os míopes (e os incréus). Mas é infundamentado. Os baixos veem na mesma, não precisam de escadotes. São diligentes a procurar um expediente para verem o que a baixeza podia ocultar: dirigem-se a promontórios; não se colocam atrás de quem seja mais alto; espreitam entre os corpos da multidão; não frequentam multidões (há de ser provado, estatisticamente, que os baixos são os maiores misantropos).

Mais depressa um míope (ou um increu atacado pelo princípio geral do ceticismo) se socorre de binóculos. Precisa de testemunhar o que se passa à sua volta. Se o meio exterior for um pano baço que se abate sobre o dia composto, precisa de o ampliar para o tornar inteligível. De outro modo, sente-se perdido. Náufrago sem salvação: desconhece os contornos do meio exterior, balbuciando o medo próprio de quem avança contra a penumbra, perdido de si.

Também se encontram os que se ufanam de não precisarem de binóculos ou de qualquer outro doping inventado para arredondar fragilidades. Passeiam um ar de superioridade e desdenham dos que têm de comprar binóculos; desdenham dos baixotes que andam com um pequeno palco de três degraus a tiracolo (em sentido metafórico) para nele se empoleirarem e poderem tirar as bissetrizes das coisas lá fora. Porém, são os mesmos que se agarram a disfarces para fingirem uma condição que os diminui (a baixeza elevada através de sapatos híbridos que têm tacões elevados; a incapacidade de interpretarem o que lhes passa sob o nariz – para compensar esta fraqueza um binóculo, por potente que seja, não tem serventia).

Os gagos tartamudeiam; os obesos não escondem os opíparos manjares e o apetite constante; um cinéfilo perde a conta às vezes que foi ao cinema numa semana; um militante milita, com compromisso incontestável e um desprendimento arrasador; um narrador esquece-se da vida própria, nela embebendo a vida de quem narra; os crentes acreditam – e é só isso; os estetas desconfiam da fealdade; os nefelibatas usam a boémia da noite sem a contaminarem; os espiões esqueceram-se da sua própria existência, são viciados em vidas outras; o gongórico desconhece o minimalismo (e as virtudes do silêncio); há um numeroso exército que finge como quem mente com os dentes todos; “e assim sucessivamente”.

Todos são o que são e como são. Mesmo que isso signifique uma plêiade de disfarces e um desmentido formal (mas não assumido) de tudo o que encenam ser.

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