16.1.24

O futuro não tem passado (e outras diatribes que estilhaçam os feitores de lugares-comuns)

Jeff Buckley, “Grace” (live at BBC), in https://www.youtube.com/watch?v=KOjP1d8WzIg

Estas eram as linhas tortas que endireitavam o futuro. Havia muita gente que, a propósito do futuro entretanto desembaraçado, mergulhava numa névoa onde só havia angústia como elemento químico. Não sabiam se lamentavam o despropósito do devir ou se era ao passado que deviam pedir contas.

As responsabilidades moravam sempre do lado de fora. O passado não tivera nada a ver com as pessoas, nem elas a ver com o passado. Um tremendo buraco negro que erodira o passado de tal maneira que era esquecido, ou como se não tivesse acontecido. Pior, só os nostálgicos que atrelam o passado ao futuro – ou o futuro ao passado, ainda não decidiram se a ordem existe ou se é aleatória. O que queriam era fazer uma fogueira com o passado, secretamente aspirando a mistura de odores como se fosse suficiente para banir o passado. O que sobrava nas bibliotecas, nos arquivos e nos recantos das memórias era demitido do passado. 

Entretanto, as pessoas docemente iludidas pelo divagar madrigal assinavam o manifesto contra o futuro sem serem partidárias do passado. Acusavam-nas de imprevidência. Ou de incoerência (o que era pior, de acordo com os detratores). Os cavaleiros da esperança sem paradeiro tomavam a palavra arqueada sobre o tempo como se fosse a sua extinção. Ficavam as palavras e um deserto de tempo, pois é o tempo que precisa de palavras.

E assim avançavam pelo futuro, destronando o tempo presente. Nunca chegaram a entender que um futuro sem presente não existe. Saltavam o presente e nunca chegavam a perceber o que é o futuro. Havia filósofos de serviço a tentar explicar as funções complexas que, todavia, dispensavam provas matemáticas. Um deles, perante a incredulidade de um náufrago de todos os tempos, simplificou: é do domínio da intuição, não tens de semear o sortilégio com a fortificação da razão.

Nas horas boas, reconciliavam-se com as diversas manifestações do tempo. Conviviam, algo resignados, com os lados do passado que não apetecia recordar. Escondiam-se dos momentos que mereciam contemplação: eram modestos e julgavam que as dádivas do passado lhes eram devidas, não mereciam loas a condizer. 

E assim partiam para o futuro, como se estivessem a começar de uma folha em branco. Podiam-lhes dizer que nasciam todos os dias. Eles agradeciam a lembrança.

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