6.3.24

7:15, ou a bandeira do fogo (short stories #448)

The Cure, “Plainsong”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZkJwpYrcAko

           Nem todos os relógios avançam ao mesmo tempo. É como as pessoas. O rapaz estremunhado carrega às costas uma mochila com o peso digno de um halterofilista. Arrasta-se vagarosamente. Aproveita a prioridade da passadeira, para desespero do taxista apressado que dispara uns impropérios que arrebanham preguiça e gerações novas. A caminho da estação ferroviária, uma maré de gente desordenada. Nem todos vão para o mesmo lugar. Ainda bem, o pluralismo tem andado em baixa na bolsa dos valores. Um migrante está ajoelhado à entrada do cais, de mão estendida, silenciosamente à espera da caridade. A crer pelo chapéu no chão, o pecúlio foi modesto. A mãe jovem carrega o bebé. Parece que o rosto da criança vai esmagado contra o peito da mãe. O cansaço começa logo pela manhã tumultuosa. Se metade dos servos soubesse das ideias de Agostinho da Silva, sublevavam-se contra o dever do trabalho e a posse do capital. Seria uma rebelião mais eficaz do que alguma vez os marxistas sonharam. As pessoas não gostam de filosofia, um objeto esotérico que se limita a especular sem cuidar das coisas práticas da vida. Os capitalistas e os embaixadores da estabilidade agradecem o estatuto anónimo da filosofia. Preferem incutir os vícios do consumo: eis a bandeira do progresso, o estalão do bem-estar das massas pouco instruídas (também se aplica aos graduados que foram hipotecados pela inércia), um ópio garridamente colorido, o motor dos privilégios de poucos à custa dos tributos arrancados à pele dos que não podem fugir. Ao fundo, no arranha-céus, uma bandeira a meia-haste. Alguém morreu e a maioria não sabe quem foi. Não dão conta que a bandeira está a meia-haste. O que conta é a bandeira. Continuam o seu caminho, melancolicamente anestesiados, jurando fidelidade a uma bandeira que não quer saber deles.

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