Tricky ft. Tirzah, “Sun Down”, in https://www.youtube.com/watch?v=aig0YH61CDQ
Erram os que anulam o zero enquanto algarismo. O zero tem a sua força matemática. Pode conter uma força ausente nos números que se emanciparam do zero. É o que dizem, entre gurus das almas e peticionários de peregrinações interiores: “é preciso começar do zero”.
No concurso de metáforas, a ideia vem substituída pela imagem de uma folha em branco. E ali está a folha, não se sabe se em estado de ansiedade ou em pura indiferença, quer saber que agressões vão ser cometidas quando o lápis empunhado descer sobre a folha, pronta para ver a sua alva virgindade destronada. A folha em branco olha para quem se propõe inaugurá-la, como este olha para a folha em branco à espera da inspiração de uma ideia, do sortilégio de umas palavras que desembolsem o recomeço. São dois estranhos e estão em vias de deixar de o ser quando o lápis verter a sua tirania sobre a folha, já não em branco. Se dizem que os recomeços são sempre heurísticos, eleve-se a folha em branco, ou o zero inspirador, à categoria de património imaterial da humanidade.
Por isso o zero, quando é (re)começo, vale mais do que os números que o sucedem. Sem zero não há os números demais. Por mais que os distraídos jurem que o zero não pertence à sua epistemologia – pois dirão, com a convicção de quem segura categóricas certezas, “eu começo a contar do um”, destinando o zero à nulidade convencionada – aqueles instantes que precedem uma contagem algébrica são o lugar ocupado pelo zero.
O zero não rima com a longa noite deserta em que nada acontece. E mesmo que queiram que a noite seja o cometa agarrado a um zero, é a noite que precede a manhã em que tudo se renova. O zero pode ser o instante que precede o momento fundacional, a página em branco que vem antes da página um, o ano zero que corresponde ao calibrar necessário depois de uma rotura.
Depois do deserto, os espíritos que pedem a água da redenção não se mortificam no adiamento da angústia. Enchem-se de coragem e prometem o ano zero, prometem ir às fundações e remexer o magma para o trazer à tona. Só depois de decantar o magma é que se podem alimentar do vazio vasto que se oferece na forma de um zero qualquer. Mais tarde, quando as pessoas emolduram o seu pessoal resgate, tendem a omitir a força genesíaca do zero. Mergulham na desmemória ou medram na ingratidão, os que assim obliteram o zero.
O zero merecia melhor sorte.
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