22.3.24

Pandora não tem culpa da Torre de Babel

Cocteau Twins, “Sigur Hiccup”, in https://www.youtube.com/watch?v=-qco-GgmTQ4

Pandora amarrotou um papel – era um poema de Petrarca. Ela não sabia quem era Petrarca. O poeta, com a ajuda do sindicato respetivo (que não era presidido pelo bardo do regime, entretanto reformado), não se conformava. Agitou-se na sepultura e os ossos recuperaram das cinzas do século XIV para vociferarem um protesto, lavrado com a solenidade exigível no parlamento dos poetas.

Pandora não era sensível à poesia. E aos filósofos. Já se enamorara por um filósofo e por um poeta e não guardava boas memórias dessas experiências. Pandora, mais dada às impressões materializáveis, não entendia a abstração do filósofo e a constelação de figuras de estilo e de palavras intermediárias do poeta. Não eram amantes de que guardava boas impressões. 

Pandora, mulher moderna e sem tergiversações perante o compêndio de bons costumes a que as mulheres devem obedecer, entrou numa torre feita de complexidade. Não se intimidou. Entregou-se à demanda, sabendo que os labirintos costumam ser fortes que restringem a liberdade. A sua coragem estava documentada. Ai de quem a menosprezasse por ser mulher desempoeirada: apoderava-se das suas melhores armas e o efeito nos marialvas era devastador. Alguns pressentiam que era uma amazona exilada dos tempos distantes.

No labirinto, Pandora tropeçou em vultos da cultura. Deviam ser vultos da cultura, que ela estava vacinada contra eles pelas razões expostas. Mas aquela era uma torre que alojava cultura. Na portaria do labirinto, o nome de batismo dardejava, ameaçativo, sobre os visitantes: “Torre de Babel”. Pandora não adivinhava que tinha entrado num ciclópico inventariar de cultura, como se este fosse o museu de todos os museus, o antro da humanidade. Errou vagarosamente pelos corredores apertados do labirinto. Sentiu um feixe contínuo a invadir o seu corpo, como se todos os vultos ali residentes tomassem uma parte da sua carne para a contagiarem com conhecimento. Era como se Pandora  bebesse de um cálice de um vinho quimérico. Não ouvia vozes. O silêncio matricial insinuava-se nos poros de Pandora, que estava cansada e ao mesmo tempo preenchida, como se aquele dia equivalesse a uma vida inteira. 

À saída da Torre de Babel, Pandora trazia uma caixa. Oferta dos procuradores da torre. Ainda hoje conserva a caixa fechada. Uma diligência que terá salvado Pandora da decadência.

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