12.3.24

Perfeito o pretérito (logro)

Eels, “Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=-ILgcm5c8oc

Um salva-vidas erra sozinho no mar à vista. Não se sabe se o mar deitou o tripulante borda-fora, ou se o salva-vidas se emancipou do navio.

A trupe percorre as ruas com algazarra. Berra e dança e importuna os passeantes. Não é por mal. Não levem a mal. É para ver se contagiam os passeantes.

A bailarina, tão frágil que até parece de porcelana, foge da chuva com medo de tropeçar. Não tem medo da chuva. Tem medo de não poder dançar.

A criança gatafunha uma folha. As cores sobrepõem-se, apesar da tempestade que se esmaga contra a janela.

O homem arrepende-se das palavras ditas num momento de loucura. Desculpa-se. Não quer indulgência da mulher ofendida. Apenas a quitação da consciência. 

O relógio da igreja deixou de dar horas. Há muita gente que perdeu a noção do tempo.

Os socalcos sussurram uma matemática diletante. Inventariam verbos improváveis que  compõem a paisagem.

Dizem que os aeroportos são impessoais. Conheci um realizador de cinema que se recusa a viajar de avião porque odeia aeroportos.

Sempre que chegava a uma rotunda, circundava-a três vezes. Opunha-se aos que dissessem que era por superstição.

Um dia ouviu dizer que era melhor nem tentarmos saber o que se passa na cozinha de um restaurante (até dos mais estrelados). Concorreu à autoridade de segurança alimentar, para o tira-teimas.

Nunca quis saber da noite, a não ser para paradeiro do sono.

A água do mar era tão fria que era como se um punhal cortasse fundo até aos ossos. Ou era uma ideia feita. 

A argamassa estava puída. As paredes tremiam com o uivar do vento. O mal era do vento, que ninguém lhe pediu para uivar.

Sentia o luar como uma gramática sem métrica. Interrompia o sono só para saudar a lua generosa.

Os matinhos colonizavam os baldios, com o seu consentimento. Os baldios não eram baldios sem uma amostra de matinhos.

As coisas nunca foram grandes. A ambição coalha na impossibilidade. As pessoas começaram-se a habituar à  humildade.

O passado não tinha de ir a julgamento. E esse era o melhor julgamento que se podia destinar ao passado.

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