Eels, “Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=-ILgcm5c8oc
Um salva-vidas erra sozinho no mar à vista. Não se sabe se o mar deitou o tripulante borda-fora, ou se o salva-vidas se emancipou do navio.
A trupe percorre as ruas com algazarra. Berra e dança e importuna os passeantes. Não é por mal. Não levem a mal. É para ver se contagiam os passeantes.
A bailarina, tão frágil que até parece de porcelana, foge da chuva com medo de tropeçar. Não tem medo da chuva. Tem medo de não poder dançar.
A criança gatafunha uma folha. As cores sobrepõem-se, apesar da tempestade que se esmaga contra a janela.
O homem arrepende-se das palavras ditas num momento de loucura. Desculpa-se. Não quer indulgência da mulher ofendida. Apenas a quitação da consciência.
O relógio da igreja deixou de dar horas. Há muita gente que perdeu a noção do tempo.
Os socalcos sussurram uma matemática diletante. Inventariam verbos improváveis que compõem a paisagem.
Dizem que os aeroportos são impessoais. Conheci um realizador de cinema que se recusa a viajar de avião porque odeia aeroportos.
Sempre que chegava a uma rotunda, circundava-a três vezes. Opunha-se aos que dissessem que era por superstição.
Um dia ouviu dizer que era melhor nem tentarmos saber o que se passa na cozinha de um restaurante (até dos mais estrelados). Concorreu à autoridade de segurança alimentar, para o tira-teimas.
Nunca quis saber da noite, a não ser para paradeiro do sono.
A água do mar era tão fria que era como se um punhal cortasse fundo até aos ossos. Ou era uma ideia feita.
A argamassa estava puída. As paredes tremiam com o uivar do vento. O mal era do vento, que ninguém lhe pediu para uivar.
Sentia o luar como uma gramática sem métrica. Interrompia o sono só para saudar a lua generosa.
Os matinhos colonizavam os baldios, com o seu consentimento. Os baldios não eram baldios sem uma amostra de matinhos.
As coisas nunca foram grandes. A ambição coalha na impossibilidade. As pessoas começaram-se a habituar à humildade.
O passado não tinha de ir a julgamento. E esse era o melhor julgamento que se podia destinar ao passado.
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