15.3.24

O mal, disfarçado de azul celeste

Massive Attack, “Karmacoma” (live from Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=_b9y13tObEw

Asas quebradas implicam anjos abortados na tarefa de travar o arrojo do mal. Os estrovos avulsos apareceram sem agenda e os anjos não vingaram. Deixaram atrás dos seus cadáveres um número assustador de vítimas.

As cores deixadas em legado não conspiravam entre si. Dizia-se delas que eram sinais que podiam ser traduzidos, deixando à parte as metáforas insondáveis. Dizia-se: que a maldade era abainhada a preto, como se um luto iníquo se abatesse sobre as presas preferidas do mal. As presas preferidas: era quem viesse ao acaso, o mal era das coisas mais democráticas.

Mas o mal também vestia o fingimento. Também orquestrava ardis para se disfarçar de outra coisa qualquer. As pessoas estavam habituadas ao mal. Quase todas já tinham sido apanhadas nas malhas do mal e só depois é que perceberam. Tinham feito o tirocínio para não serem reféns. E para deixarem um pé atrás, à cautela. Pressentiam o mal assim que ele sussurrava por cima das fronteiras. Descobriram um código que inventariava o mal nas imediações. O mal, sabendo do princípio geral da precaução que se levantava contra ele, jogava outros trunfos. Tinha de fingir que não era mal.  

As pessoas não podiam prescindir de um módico de ingenuidade. Por mais que cavalgassem na desconfiança para deixarem o mal desarmado, não podiam travá-lo quando se dissimulava. Se o mal aparecia transfigurado de azul celeste, as pessoas associavam o azul celeste ao céu. Congeminavam outras metáforas e a correspondência ao azul celeste dirimia a desconfiança. 

Mas o mal tornou-se o rosto do azul celeste e todas as coisas que aparecessem tingidas por esta cor tornaram-se reflexos da maldade. Ninguém contava. O mal apanhou todas as pessoas que deitaram a mão ao azul celeste, convencidas que era uma brisa marítima que ornamentava as suas vidas. Em vez de aromas, o azul celeste, disfarçado de maldade, semeou a devastação interior.

As pessoas aprenderam a desconfiar de todas as cores. Em vez de se emprestarem às versões líricas dos que recusavam o mal como princípio de muitas coisas, passaram a usar todos os pés para estarem de atalaia. 

O mal, daí em diante, só apanhou empreitadas difíceis. 

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