27.3.24

Talvez se diga do futuro que entrou na estalagem do passado

Death in Vegas, “Dirge”, in https://www.youtube.com/watch?v=F5nzwqj3utY

O degelo: o aquecimento não tolera a permanência do degelo, condenando-o a esvair-se em pequenas gotículas de água que se desprendem e avançam pelo chão limítrofe. O que dantes era paisagem preenchida pela alvura deixa à mostra o seu estado habitual, um prado verdejante que recebe as árvores alinhadas esparsamente nos campos baldios. 

O degelo é a prova que o passado também se compõe de futuro. Não havia degelo se o futuro não o tivesse candidatado a ser a imagem formulada do passado. Só nos lugares onde as neves são eternas o degelo não é feito de futuro. É presente perene, para confirmar que as neves são eternas. Fora destes lugares, o degelo é a aproximação ao futuro antes de ter acontecido. A neve acamada só espera que o futuro dite o inexorável degelo.

O futuro pode ser cúmplice do passado, entrando antes do tempo na estalagem onde o passado se congemina. Não são as profecias agastadas pela errância que desenraízam o futuro imerso no passado. É a lógica dos acontecimentos que se esperam com elevada probabilidade e que autorizam a adivinhação do futuro. Sendo um futuro previsível, pertence ao passado antes de o ser. Um nevão evapora-se quando o ar aquece, ou quando a precipitação líquida cai em cima da neve, dissolvendo-a na mesma água que a derrotou. Todo o futuro tem um passado promissor.

Estima-se que todo o futuro será transfigurado em passado assim que o seu tempo foi emoldurado nos arquivos à mercê da memória. Eis outra razão para tirar legitimidade ao futuro: ele é imprevisível, e só as falsas profecias, as que não suportam a fragilidade da sua capacidade intuitiva, é que podem manter a predileção pela adivinhação do que não é adivinhável; e quando o futuro se cumpre, torna-se imediatamente passado.

As profecias deviam ser todas sobre o passado. Todas estariam certas e os profetas não andavam a esconder a mágoa de quem erra por sistema acerca da modalidade em que se traduz o futuro. Os profetas não se deviam acanhar perante o passado. Só tinham de aprender que o futuro regressa sempre à forma de passado.

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