Mogway, “Midnight Flit”, in https://www.youtube.com/watch?v=_4IkTL3P_pc
Escrevo. Escrevo como se os dedos pedissem toda a água reservada nos mares e as palavras subissem a palco sem urdiduras, sem serem forçadas a emergir. Assim elas, apenas palavras.
Escrevo sem ser sobre escombros, sem procurar quimeras ou cais salvíficos. Escrevo como se do sangue ficassem tatuadas as páginas em frases imunes ao bolor, em páginas que não sobram nas bibliotecas. Escrevo sem saber de cor a cor dos milagres. Inventando personagens e montando os palcos a que elas sobem. Escrevo para congeminar a audiência que contempla os palcos.
Escrevo: sem fundamento, sem roteiro, sem às vezes saber, um par de minutos antes, sobre o que vou escrever. Escrevo e essa é uma terapia contra as enormidades bolçadas pelo mundo exterior. Escrevo sem esconderijo. Sem pseudónimos, sem forjar alteridades que se tutelam em múltiplos tentáculos. Escrevo sem temer a contradição. Sem fugir da incoerência. Escrevo porque sei de todas as fragilidades que habilitam a imperfeição. Escrevo para dar a voz a essas impurezas.
Escrevo à hora que for. Não há hora certa para escrever – todas as horas em que a escrita é convocada são horas certas para a escrita. Escrevo para domar o tempo. Para deixar que as palavras devolvam a autenticidade prévia à escrita. Escrevo onde for. Já me desabituei da escrita manual, da escrita elegante que traz a caução artesanal que mergulha em tempos arcanos. Deixei de acusar a caligrafia como marca registada.
Escrevo quando estou trespassado pela solidão. Numa carruagem do comboio, se tenho companhia no lugar do lado, reduzo o tamanho da página para 75%, o ardil para me refugiar numa solidão todavia encenada. Só no auge da solidão é que o pensamento se ordena, as palavras são arrancadas às paredes que as petrificavam, o assunto é desalfandegado da inércia.
Escrevo para descobrir os fortes que me acolhem à margem do mundo puído, dando-me muralhas contra ele. Escrevo para arrefecer o sangue sobressaltado que pressinto a transbordar. Escrevo para esconjurar as sombras que se abatem sobre o quotidiano, à falta de não conseguir omitir as notícias que fazem a História do dia. Escrevo para disfarçar as personagens, para coabitar nas palavras avalizadas, para ser domado pelas palavras que depois se emancipam na sua ordem espontânea. Escrevo para descobrir labirintos sem rédea.
Escrevo sem saber se sou escritor. Escrevo sem saber se quero ser escritor. E continuo a escrever. Para saber ler a liberdade.
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