1.3.24

A insónia das caricaturas

The Sisterhood, “Rain From Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=5fRPjCs1HJo

Era o cardápio que havia: narizes aduncos propositadamente exagerados, dentes tortos que pareciam saídos de um museu de aberrações, magreza e obesidade extravagantes, as palavras que deviam ter sido ciciadas a bem de quem as proferiu, mas tinham entrado no domínio público para escárnio dos demais, e outras excentricidades que tais.

Uns ficavam abespinhados. Não admitiam a caricatura nesses termos. Se apanhassem o desenhador exigiam uma correção para tornar a caricatura mais condizente com o rosto retratado. Ainda bem que a morada do desenhador era desconhecida. Ainda bem que o desenhador desaparece de circulação por uma temporada depois de uma caricatura que esporeia a ira do caricaturado. Os que se assanhavam com as suas caricaturas não percebiam o que é uma caricatura. Tinham sido dispensados do tirocínio da ironia. Os que sabiam um módico sobre ironia desconheciam que também se abate sobre eles (e menos ainda sabiam da possibilidade da autoironia).

Outros continuavam imperturbáveis, exibindo a fleuma ou um olímpico fair play nórdico. Se pudessem encontrar o desenhador, iriam ter com ele para o felicitar. Sabem que o mundo é uma coutada de exageros. Reconhecem os efeitos terapêuticos da ironia, mesmo na sua modalidade mais difícil de praticar: a autoironia. Os que mais se riam da sua própria caricatura chegavam a confessar aos mais próximos que se tivessem dotes para o desenho exageravam ainda mais na sua própria caricatura. Levavam muito a sério o não se levarem a sério.

As caricaturas não são o bodo que patrocina o fingimento. Não tutelam disfarces que erradicam angústias interiores. Pelo contrário: chamam-nas a palco para se olharem cuidadosamente e perceberem que não são o paradigma que os devaneios narcisistas cozinham em lume brando. Uma caricatura oferece um espelho por onde o próprio se espreita, no advento de um vulto deformado. Somos a nossa própria imperfeição, em hipérbole.

As caricaturas não dormem. Atravessam o nosso sono e o tempo em que temos consciência de nós e dos outros. Sobrepõem-se ao tempo que nos é entregue. Os levantamentos contra as caricaturas deviam ser proibidos. A arte não tolera que a tentam domesticar. A liberdade de expressão, também não.

Sem comentários: