29.3.24

Os insuspeitos

Explosions in the Sky, “The Fight”, in https://www.youtube.com/watch?v=SxE8prkgKBM

Os coiotes andavam por perto. Podiam ser embaixadores das desgraças que nunca se desalinham do porvir. Os coiotes são como médicos legistas que se afundam nas carcaças que perderam a vida. As pessoas desavisadas não sabem do paradeiro dos coiotes. Não sabem que há abismos precoces a tingir a malha das vidas, algumas vezes interrompendo-as prematuramente. 

Numa horta da cidade, o galinheiro foi profanado. Uma carnificina. O chão embebido em sangue, os corpos estropiados das aves, uma impressão de caos estacionada no lugar, como se um desdeus amnésico tivesse desarrumado todos os haveres – como se aquele fosse um bilhete postal do apocalipse. O homem reformado que explora a horta faz contas à vida. Não é o prejuízo que o incomoda. Está perturbado pela violência, por ter empilhado os corpos estropiados das galinhas e dos galos. Protesta contra a injustiça que desprotege as vítimas. O velho culpa os coiotes que, diz-se, andam nas proximidades.

Não há notícia de os coiotes se aproximarem das cidades. Diz-se que o estio forçado teve consequências no ecossistema e os coiotes ficaram à míngua de pequenos mamíferos, que foram morrendo de fome ou de doença. Em estado de necessidade, os coiotes começaram a perder o medo de entrar nos limites urbanos: onde há pessoas, há outros animais que são comidos pelas pessoas. Sempre à noite, que os coiotes ouviram dizer que à noite quase todos estão a dormir. 

Até à data, ninguém viu um coiote nas ruas da cidade a altas horas da noite. Alguns animais de criação têm morrido e as acusações apontam para os coiotes: “só podem ser os coiotes”. A intuição sobrepõe-se às provas, que não existem. Já há brigadas prontas a organizar a montaria aos coiotes. Eles são insuspeitos de não terem cometido todas as carnificinas anotadas nos registos da polícia.

As pessoas não escondem os laivos de selvajaria prévios à sua domesticação através da vida coletiva. Na altura do desespero, quando a desorientação se oferece como leme, as pessoas atropelam o que aprenderam nas escolas e alinham pelo esquecimento – alinham pela boçalidade própria de quem age sem parar para pensar primeiro. Não é preciso recolher provas. À falta delas, deixa-se a intuição falar sozinha. A justiça não tem de esperar pela demora dos tribunais. Mas a intuição nunca foi o forte dos Homens.

Agora, são os homens urbanos que invadem o habitat dos coiotes. Montaram-lhes uma caçada. Tal como não avistaram coiotes na cidade, não conseguiram ver nenhum coiote nas matas limítrofes. Os coiotes são insuspeitos de depositarem um grama de confiança na espécie humana. Já os Homens continuam a ser suspeitos de outras barbaridades. E são incorrigíveis (as barbaridades e os Homens que se inebriam ao cometê-las).

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