5.3.24

A paragem do autocarro que era um esconderijo do drogado

Mutu, “A Corda”, in https://www.youtube.com/watch?v=FfNkkEXFGic 

A chuva estava mesmo a pedir que as pessoas se refugiassem na paragem do autocarro. Mas as pessoas, enquanto esperavam pelo autocarro, estavam alinhadas fora da paragem. Preferiam estar à chuva, logo nesta terra em que as pessoas ofendem o Inverno e oferecem o labéu de “mau tempo” quando a chuva toma a vez do sol.

Um drogado ocupou um canto da paragem do autocarro enquanto dormia. Do mais, nada se sabia. Se era mulher ou homem, velho ou novo, nada se diria sobre os andrajos possivelmente puídos. O drogado enfiou-se num cobertor velho, tal era o paradeiro do seu sono e o refúgio do frio que se fazia sentir em comandita com a chuva insistente. As pessoas não comentavam a colonização da paragem do autocarro pelo drogado. O silêncio cominava o enfado de terem de partilhar espaço com o drogado. Preferiam estar à chuva, como se o drogado preso à letargia fosse uma ameaça. As pessoas pareciam ter combinado o silêncio e a distância.

Uma velhinha chegou mais tarde e não percebeu por que a fila para o autocarro estava à chuva. Hesitou, acenou em jeito de pergunta, só para confirmar se era a fila para apanhar o autocarro. O gesto em resposta não foi significativo e a velhinha passou à frente da fila – a chuva emudecia os ossos – até perceber que um drogado estendeu os efémeros pertences num canto da paragem. Ela também recuou, enquanto abanava a cabeça em tom de desaprovação. Dava para traduzir a linguagem corporal: a velhinha desaprovou a desgraçada condição do drogado.

Para aquelas pessoas, era como se o vício dos estupefacientes se contagiasse por simples aproximação ao drogado. Ou não queriam ser testemunhas do acordar estremunhado e ressacado do drogado; para desgraças, aturam as que são visitação assídua e das quais não se podem demitir. 

As pessoas foram às suas vidinhas, embarcadas no autocarro que passou antes de o drogado acordar. Nenhuma voltou a pensar na miséria que fingiram que não viram. Nenhuma se queixou da chuva insistente que sobre elas caiu nos minutos que esperaram pelo autocarro e como preferiram estar à chuva a estarem perto do drogado. Nenhuma perguntou, numa distração do dia, se o drogado já tinha acordado e se amanhã iria acordar. Estavam mais confortáveis se o drogado apanhasse um autocarro para a sua vida e não voltasse a colonizar a paragem.

Ao drogado, ninguém fez perguntas. Ninguém foi à frente no tempo para saber do seu paradeiro. Nem queriam saber do seu nome – era, apenas, o drogado. O drogado tinha cartão de cidadão e número de identificação fiscal?

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