14.3.24

Bem-vindos ao contexto

Nick Cave & the Bad Seeds, “Wild God”, in https://www.youtube.com/watch?v=uAgsn7la3jg  

Que sabes das sílabas que preenchem os minutos? Que sabes dos jardins extáticos que se escondem nas muradas das casas burguesas? Que sabes do sangue que corre nas veias da noite? Que sabes do labirinto em que se enreda o porvir?

As avenidas podem estar repletas e soarem a decrepitude, como se estivesses num lugar ermo que ninguém quer habitar. Tomas por certas as palavras beatas que disfarçam a sumptuosidade de uma agressão moral. És cúmplice. Não desatas os nós que levitam sobre a pele que endurece com o tempo dos contratempos. Não é o vento que conspira; é o tempo, que murcha. E tu, rimas.

Os roteiros estão escondidos no avesso das mãos. Dizes: não queres saber dos destinos, sem penderes para a vulgata do “o-que-interessa-não-é-o-destino-mas-a-jornada”, ou lá o que é. À tua frente, o mar inteiro. As pessoas todavia desinteiras, estrofes encenadas da dissimulação incarnada. Tu próprio, uma farsa. Pretendes indigência ao convocares em tua defesa o efeito de contágio; pois é: farsa, tu, mas só porque não resistes à maré imparável alimentada por todos os farsantes à tua volta. 

Ah, se as ideias fossem um caudal a inundar as margens e colhesses nas águas foragidas os rudimentos da desencenação, talvez tudo fosse fácil (e não tens a certeza se isso é pretensioso). Seríamos inteiros se navegássemos nesta doca seca, à prova das aguaças que transbordam da exiguidade das pessoas disfarçadas por dentro das suas farsas. Que máscara deixarias de usar – já pensaste nisso, ou nem sequer to ocorre reconhecer o disfarce com que ornamentas os dias que te conhecem?

Não são as voltas insanas da mota que avança destemidamente pelo poço da morte que te galvanizam. Todos são heróis depois de encurvarem o arnês. Todos são heróis depois do tempo se ter convertido em passado. Os bolsos puídos, já esburacados, não guardam memórias. Fazes de propósito (admites). Corres contra o espaço vazio que te separa de um corpo alheio. Passas pelo corpo com a indiferença de não ser o corpo teu. O cansaço, é o cansaço que te pede a água de que a boca precisa. 

Depois de amanhã, quando souberes do teu paradeiro, tratas das pendências. Não serás tu a terçar uma beligerância insensata. Darás ao futuro as cores de um contexto. Se não te esqueceres delas até lá.

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