25.3.24

Dar corda aos pedais

Radiohead, “The Thief”, in https://www.youtube.com/watch?v=YmQ4gkdC6EI

Vinha aí a maré má. Os heróis faziam peito. Os pobres não sabiam que podiam ser despedaçados pela maré mortífera. Insistiam na heroicidade estulta: se eles não fossem heróis, a maré ia ceifar mais inocentes. Os heróis eram os procuradores dos inocentes. Viciados em indigência ao quadrado, os heróis de pacotilha nem sabiam que o número de vítimas era independente de haver um punhado de heróis a receber, em primeira mão, as ondas assassinas.

Os que tinham os pés assentes em terra firme que cuidassem da vidinha. Já que estavam assentes em terra firme, antes pegar neles e zarpar para um lugar antípoda onde a maré má não conseguisse ancorar. No momento de dar corda aos pedais, nem todos teriam bicicletas disponíveis (a desproporção entre habitantes e velocípedes ainda era grande – e os turistas tinham de ser somados para se ativar a equação). Alguns motins irromperam entre os menos-cidadãos que só queriam tratar da sua isolada vidinha e não hesitavam em condenar à morte os que conseguissem apear das bicicletas recrutadas para a fuga.

Este era um mal que não apoquentava os que não sabiam andar de bicicleta. Teriam de dar à perna, na falta de pedais a concurso. Mover-se-iam com o vagar do passo ainda que acelerado. Os que davam ao pedal tinham mais hipóteses de se salvarem da maré má.

Na desordem instalada, até as forças da ordem seriam extintas das ruas. Todos ficavam entregues à sua diligência, talvez ao acaso. Por essa altura, já os heróis tinham deixado de o ser, engolidos pela voragem da maré malévola. 

Mas, afinal, tinha sido falso alarme. No observatório das marés (os peritos não gostavam da palavra marégrafo – e os peritos tinham um terrível mau gosto), os cálculos a favor da maré má foram feitos depois de almoço. Erraram por excesso. Tinham dado muita corda ao álcool. No próprio dia, o ministro da tutela pôs uns patins aos peritos que causaram tanto alarme infundamentado. Ao menos, os heróis ainda estavam presentes. Lamentando-se, contudo, por não poderem provar que eram heróis.

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